No presente artigo, debruço-me sobre o diálogo entre a literatura e outras artes, tendo como escopo a exposição artesanal intitulada (A)utopia de Madeira e Zinco, da autoria de Aparício Cuinica (doravante Matxene), licenciado em Literatura Moçambicana, pela Universidade Eduardo Mondlane e artisticamente conhecido como Matxene. Importa salientar que a análise percorrerá dez obras, de um total de vinte e duas da mesma exposição.

Matxene viu-se mergulhado, desde 2017, na Escultura e, desde então, participa em vários concursos, porém de desenho, sua outra paixão. Foi, pela primeira vez, em Escultura, o vencedor do 1º lugar na categoria Criação Artística, do Prémio Municipal da Juventude da Cidade de Maputo (2023).

(A)utopia de Madeira e Zinco é a sua primeira exposição. Trata-se de obras que se conceberam com base em panelas e chaleiras velhas de alumínio, cápsulas de garrafas, latas velhas, fios, entre outro material reciclado que, segundo atesta Matxene, não é fácil de o achar e, às vezes, faz-se necessário humilhar-se, associar-se aos mendigos para a sua colecta.

Aspectos teórico-metodológicos

As obras que compõem esta exposição são uma prova viva de que existe deveras um diálogo entre a literatura e outras artes, especificamente a Escultura; neste caso, plana, como atesta o autor, na medida em que, a priori, a partir dos títulos, denuncia-se a intertextualidade, do tipo pastiche.

Entenda-se pastiche como obra literária ou artística em que se imita abertamente o estilo de outros escritores, pintores, músicos etc. Esta não tem, contudo, a função de satirizar, criticar a obra de origem, diferindo-se, assim, da paródia.

Trata-se de “A Terra de Mim” (que considero adaptação “d'O Pais de Mim”, de Eduardo White), “Moçaliza” (uma adaptação de “Mona Lisa”, de Leonardo da Vinci), “Surge et Ambula, Maputa” (adaptação de “Surge et Ambula”, de Rui de Noronha); obras que, a nível temático, evidenciam sobremaneira a sua relação com a realidade social de Moçambique.

Para Corrales (s/d), falar de intertexto e de Literatura Comparada exige perceber que, ao lermos um texto (A), estamos a ler um texto (B) e este entrecruzamento de vozes percebidas ou levemente transparentes é algo que perpassa a escrita, em especial a literatura, ao longo de todos os tempos.

Portanto, mais do que se demonstrar neste artigo a relação existente entre um texto (A) e um texto (B) ao ler-se um deles, evidencia-se, igualmente, a sua intrínseca relação com a realidade social moçambicana.

Da palavra à construção do sentido em (A)utopia de Madeira e Zinco, de Aparício Cuinica

Neste prisma, para principiar a análise desta (A)utopia de Madeira e Zinco, faz-se necessário desvendar os possíveis porquês da escolha deste título, que me proponho fazê-lo tendo em conta os constituintes do mesmo, com especial enfoque para a palavra (A)utopia.

Parece-me lícito dizer que (A)utopia deriva de A (que exprime a noção de oposição) + utopia (ideia ou descrição de um país ou de uma sociedade imaginária em que tudo está organizado de uma forma superior e perfeita).

Portanto, seria lícito afirmar que Matxene, com esta exposição, pretende retractar um país ou uma sociedade caracterizada por construções de “Madeira e Zinco” na época (pós-) colonial, em que tudo está organizado de uma forma inferior e (im)perfeita? A resposta, caro leitor, tirará da apreciação que se fará em diante.

(A)utopia de Madeira e Zinco: um diálogo entre literatura e outras artes

Com a obra intitulada “O Plometeu Negro (2021)”, Matxene procura representar, essencialmente, a aculturação; como vinca, “a transição do africano do universo cultural Bantu para a civilização Ocidental”. Entenda-se aculturação no seu sentido mais lato da palavra, como o conjunto de mudanças resultantes do contacto de dois ou mais grupos de indivíduos representantes de culturas diferentes. Desde que se (re)visitem escritos da geração oitentista, de escritores moçambicanos, fácil será depreender este facto.
Em “O poder (2021)”, na qual Matxene representa a luta pelo poder, atesta-se que este, para ser alcançado, pressupõe sacrifícios, um dos quais consiste em passar por várias entidades oprimidas (espezinhando-as). Nesta obra, Matxene procura sobremaneira poetizar o sofrimento que marca muitos países africanos, devido à luta pelo poder, onde os meios (não) justificam os fins.

Na obra “O Monstro do Subúrbio (2023)”, Matxene, fazendo uma ponte com as obras de Muianga, Chiziane, Magaia e, inclusive, Faife, um dos autores que mereceu a minha atenção no artigo “Poemas em sacos vazios que ficam de pé: entre o real e o imaginário” nesta revista, procura, metaforicamente, denunciar a problemática do saneamento do meio moçambicano, as drogas versus juventude, a violência, enfim, as divergências e convergências entre sonhos, frustrações e rupturas, aspectos (alguns dos quais) que, de acordo com Serra, apud Das Neves (2015:61), lhe levam a afirmar que as cidades moçambicanas possuem dois mundos: o não problemático e o problemático.

Já na obra “Maylove do povo e automóvel para o governante (2022) e Trabalhador Anónimo (2022)”, Matxene pretende, essencialmente, retractar a dicotomia entre os governantes e os governados (povo) que, paradoxalmente, são o patrão dos primeiros, quando demonstra que uns (os governantes) andam de automóveis (termo que, no contexto moçambicano, passa de objecto responsável pela nossa própria locomoção e estende o seu campo semântico, significando, igualmente, luxo, sofisticação…), enquanto outros (o povo) andam de mylove, termo que, desde os anos 2014/15, passou a designar, em Moçambique, carrinhas abertas usadas para transporte de pessoas e bens, pela ineficácia e/ou ineficiência (por que não inexistência?) de transportes públicos em algumas (muitas) rotas.

Ora, Matxene, nesta obra, escusa-se de trazer uma relação entre a literatura e a sua arte (o que o faz evidentemente em “Lágrimas do Neo-Realismo Moçambicano (2023)”, onde retracta o cansaço, a injustiça, a violência, a corrupção e sofrimento do povo moçambicano, tendo como base autores como Craveirinha, Honwana, Zitha, Faife, entre outros), mas ousa-se a retractar a realidade moçambicana tal como ela é, não apenas no período em que este termo mylove (ou maylove – como o autor grafa) surgiu, mas, também, nos dias que correm.

Se outrora havia muitos myloves, hoje “podem” existir poucos, pelo facto de terem sido banidos, todavia, foram substituídos por transportes particulares que carregam pessoas nas paragens em troca de algumas moedas; entretanto, a problemática dos transportes ainda persiste e, em contrapartida, os governantes andam em carros luxuosos, escoltados pela polícia.

Na obra “Moçaliza (2022)”, para representar a Alteridade e/ou hibridismo cultural – cultura moçambicana versus hábitos herdados do Ocidente pela mulher moçambicana – Matxene intitula-a Moçaliza (Moça – de Moçambique + Liza – de “Mona Lisa”, de Leonardo da Vinci), pretendendo, igualmente, entrecruzar autores moçambicanos cujos enredos e/ou situações contextuais neles subjacentes pendem entre o moçambicano e ocidental, nomeadamente Chiziane, Couto, Muianga, Coelho e Timóteo, o que se pode depreender, igualmente, na obra “O Africano Modernizado (2023)”.

Trata-se de uma temática também denominada “Hegelianismo”, que se preza na avaliação da situação, estado ou qualidade, e se constitui através de relações de contraste, distinção, diferença, que adquirem centralidade e relevância ontológica na Filosofia Moderna.

Já na obra “O Crepúsculo da Tarde de Oito de Março (2023)”, inspirado na surpreendente e triste notícia que acometeu os moçambicanos, sobre a morte do artista Azagaia, Matxene retracta copiosamente o crepúsculo que caracterizou aquela tarde que engoliu este exímio músico de intervenção social, cujo funeral épico se realizou no Paços do Conselho Municipal de Maputo, nas proximidades da Praça da Independência, como atesta a obra.

Já na obra “O Universo Marítimo Africano (2022)”, Matxene, coadjuvado pelas narrativas de escritores como Chiziane, Couto, Khosa, Coelho, Manjate e, acrescente-se, Bucuane, retrata a riqueza pesqueira que caracteriza o oceano que banha Moçambique, Oceano Índico, onde reside o imaginário, o universo mitológico e o simbolismo cultural tradicional de Moçambique, que permeiam as suas narrativas.

Por fim, temos “Surge et Ambula, Maputa” (que considero adaptação de “Surge et Ambula”, de Rui de Noronha); onde, no lugar de se despertar África, desperta-se Ma-puta, uma forma cuidadosa senão criteriosa de intentar a incorporação da ideia de vadiagem, sem rumo, a que está sujeito o povo (de Maputo? Moçambicano? Ou africano em geral?), com a intenção de o acordar, chamá-lo à reflexão, à acção (…)

Ora, muito se pode ainda dizer sobre a (A)utopia de Madeira e Zinco, mas o certo é que com este diálogo entre a literatura e outras artes, concretamente a Escultura, percebe-se que Matxene deixa escapar a realidade social de Moçambique e/ou de povos africanos e as suas vicissitudes, onde tudo está organizado de uma forma inferior e/ou (im)perfeita, chamando-o(s) à razão, à reflexão e à tomada de decisão.

Bibliografia

Infopédia. «Definição ou significado de pastiche no Dicionário Infopédia da Língua Portuguesa». Infopédia - Dicionários Porto Editora. Consultado em 13 de outubro de 2023.
Serra, Carlos (2003). Em Cima de uma Lâmina. Maputo: Imprensa Universitária.