Elaborado pelo filósofo camaronês Achille Mbembe1, o conceito de necropolítica busca descrever uma tecnologia de poder que, através da operacionalização e destruição de corpos individuais e populacionais, produz e gerencia a morte. Em seu ensaio, Mbembe parte do pressuposto “que a expressão máxima da soberania reside em grande medida, no poder e na capacidade de ditar quem pode viver e quem deve morrer”. Dessa maneira, o autor nos convida a refletir sobre os limites da soberania do Estado e sobre o lugar ao qual se destina a vida, a morte e o corpo humano, ao considerarmos a política como uma forma de alcançar o poder. As discussões acerca desta política da morte vêm ganhando espaço no Brasil, sobretudo após a emergência de Covid-19, à medida que nos ajuda a pensar a respeito de questões de segurança e de saúde pública em um país, como o Brasil, marcado pela violência policial e pelo desamparo à população e pelos anos de sucateamento de dispositivos de educação e saúde, por exemplo. Dessa forma, é adequado buscar compreender de que maneira esta necropolítica opera e se relaciona com a nossa realidade brasileira.

Sobre soberania, poder e necropolítica

Para compreender o que é Necropolítica, tomamos como ponto de partida os estudos de Michel Foucault acerca do que denominou de biopoder. Para o autor, o poder está sempre associado a alguma forma de saber. Exercer o poder torna-se possível mediante conhecimentos que lhe instrumentalizam e justifiquem. Desse modo, em nome da verdade legitimam-se e viabilizam-se práticas autoritárias de segregação e controle dos corpos e do desejo. Foucault recusa-se a pensar o poder enquanto coisa ou substância, que eventualmente pudesse ser possuída por uns e retirada de outros, mas o define como um conjunto de relações de forças multilaterais. O poder opera de maneira difusa, distribuído em uma rede social, que inclui instituições diversas como a família, a escola e o hospital, por exemplo.

A partir destas ideias, surge o conceito de biopoder, pelo qual Foucault entende as práticas, surgidas no ocidente moderno, voltadas ao controle e a regulação dos processos vitais humanos. De acordo com o autor, o poder sobre a vida torna-se um modo de administrar populações, levando em conta sua realidade biológica. Através do biopoder constituiu-se em nossas sociedades um conjunto significativo de conhecimentos, leis e medidas políticas, que visam o controle de fenômenos como aglomeração urbana, epidemias, transformação dos espaços e organização econômica.

Ao ministrar o curso Em defesa da sociedade, em 1976, e ao escrever A História da sexualidade: a vontade de saber (1976), Michel Foucault2 volta a elaborar o problema do biopoder, investigando a configuração nas sociedades ocidentais de um poder que utiliza da vida como um objeto de sua regulação, analisando a transformação pela qual passou esse poder a partir do século XVII. Esta transformação consiste basicamente na inclusão de processos biológicos nas operações do poder soberano.

De acordo com a noção clássica de soberania, soberano é aquele cujo poder reside essencialmente no direito sobre a vida e a morte dos homens. Com o objetivo de assegurar a defesa incondicional de sua pessoa ou território, era permitido a este ser soberano valer-se de seus súditos, mesmo que os conduzindo ao seu extermínio.

Todavia, surge, com base nas transformações provocadas a partir do século XVII, uma nova organização de poder. Se antigamente vigorava o princípio segundo o qual era legítimo causar a morte ou deixar viver, agora, de maneira inversa, os mecanismos de poder visam produzir a vida, articulando-se à possibilidade de se deixar morrer. Assim, as discussões em torno das noções de biopoder e biopolítica mudaram a forma do ocidente se relacionar com os saberes e as estratégias de poder.

Consolidado no século XIX como projeto de gestão da vida, é preciso contextualizar a emergência do biopoder. O surgimento da população no século XVII, como um problema econômico e político, constitui a discussão central da gestão e regulação da vida. Percebendo que não era mais possível falar sobre sujeitos, mas lidar com a população, questões como a natalidade, a morbidade, a fecundidade, a esperança de vida, o estado de saúde, a doença, dentre outras passaram a constituir variáveis significativas.

E é justamente a partir das discussões sobre soberania e biopoder que o filósofo camaronês Achille Mbembe passa a refletir sobre a vida e a morte como um traço da política, e como categorias essenciais para compreensão da modernidade, seus reveses e crises atuais. Mbembe3 retoma as críticas foucaultianas ao modelo clássico de soberania, e discorre:

Minha preocupação é com aquelas formas de soberania cujo projeto central não é a luta pela autonomia, mas “a instrumentalização generalizada da existência humana e a destruição material de corpos humanos e populações.

Tais formas de soberania estão longe de ser um pedaço de insanidade prodigiosa ou uma expressão de alguma ruptura entre os impulsos e interesses do corpo e da mente. De fato, tal como os campos da morte, são elas que constituem o nomos do espaço político que ainda vivemos. Além disso, experiências contemporâneas de destruição humana sugerem que é possível desenvolver uma leitura da política, da soberania e do sujeito, diferente daquela que herdamos do discurso filosófico da modernidade. A necropolítica4 de Achille Mbembe evidencia um novo poder soberano que define quem pode viver e quem deve morrer:

Ser soberano é exercer controle sobre a mortalidade e definir a vida como a implantação e manifestação de poder.

Mbembe toma a guerra como modelo de gestão, e o racismo como base da construção de um inimigo do Estado, legitimando corpos para a morte. O autor sugere que é possível pensar na escravidão ou o processo escravocrata como umas das primeiras instâncias de experimentação biopolítica sendo uma figura emblemática e paradoxal do estado de exceção. Dessa forma, podemos pensar que, nos contextos brasileiros, a necropolítica evidencia-se, dentre tantos outros lugares, no sistema carcerário, na população em situação de rua, nos apartheids urbanos, nos hospitais psiquiátricos, nas urgências e emergências hospitalares, e no genocídio da população negra.

O papel do psicanalista na pólis

Durante muito tempo, as questões políticas foram abordadas com certa discrição entre os psicanalistas, como se eles devessem se abster de pensar e se envolver ativamente, ou não tivessem permissão para discutir de forma alguma. No entanto, ocupar a posição do objeto na relação transferencial é uma ação do analista que de forma alguma implica tornar-se inerte ou indiferente, abstendo-se de examinar as questões ideológicas e políticas que se apresentam. A política se manifesta em duas dimensões: não apenas como poder e controle sobre o indivíduo, mas também como ação no espaço inter-relacional, isto é, aquela que visa a criação do mundo compartilhado. A política é o que gera prazer e desejo nas situações, nos eventos vivenciados pelos indivíduos nas relações sociais, em uma realidade partilhada. Mais do que aquilo que pode ser exercido por um governo, impondo poder sobre o indivíduo, ela se relaciona com a produção de um consenso sobre o que é comum e aceitável na sociedade.

É inquestionável que, em sua natureza subversiva, a psicanálise continua a acompanhar a evolução da humanidade, e, portanto, não podemos subestimar as reflexões sobre as possibilidades e limitações que ela revela. A psicanálise nos ensina que a fantasia primordial desempenha o papel de orientador da posição do indivíduo no contexto social em que está inserido, o que afeta diretamente tanto o paciente quanto o analista, que, a partir de sua própria análise pessoal, deve se conscientizar da posição que ocupa e das implicações de seu papel como analista, nas instituições e na sociedade como um todo.

Notas

1 Mbembe, Achille. Necropolítica. 3. ed. São Paulo: n-1 edições, 2018.
2 Foucault, Michel. . Em defesa da sociedade: Curso dado no Collège de France (1975-1976). São Paulo: Martins Fontes, 1999.
3 Mbembe, Achille. Necropolítica. 3. ed. São Paulo: n-1 edições, 2018.
4 Mbembe, Achille. Necropolítica. 3. ed. São Paulo: n-1 edições, 2018.