A maior parte das pessoas que se vitimiza, que se sente vítima da sociedade, da família, da sorte ou do destino é constituída por seres que se sentem destronados. Eles têm sempre uma explicação, uma justificativa. Perderam o que lhes constituía: serem os melhores, mais capazes, mais belos, aqueles que tudo merecem e devem receber, enfim, exercem um comportamento que lembra o enfant gâté.

É uma atitude intrigante do ponto de vista psicológico, terapêutico, que se expressa em: “- tudo de melhor deve ser meu, tenho direito a tudo, devo ser cuidado/a, recompensado/a”. Como se estrutura esse comportamento? É fruto de acontecimentos avassaladores. Desde criança, por impotência, desespero e carência se agarrou em si mesmo, se colocando como centro do universo familiar, e mais tarde do universo social. É um ponto de convergência. Nesse isolamento, estrutura orgulho, medo e capas de proteção para esconder fraquezas, averiguando o que recebe e o que lhe é negado, se as obrigações e seus direitos foram considerados. Verifica seus desejos frustrados e sempre acha que não foi ajudado, cuidado, que os que estavam em volta de si falharam, ou que, na ausência desses, se houvesse os “em volta” tudo seria diferente.

Para esses seres, ter inveja, ter medo, não ter condição de realizar tarefas e obrigações é o sinal que mostra como os outros falharam, o impedindo de realisar suas obrigações. Nada é nele evidenciado, nem questionado como seu problema, tudo é visto como a falha do outro, a falta de ajuda; em certos casos até Deus não é poupado: “ele falhou, não atendeu as promessas, não realizou a crença de que tudo se resolveria”, pensam.

A frustração é constante. Não se sente compreendido, nem apoiado. Cada vez mais sozinho inicia os mais variados processos para chamar atenção, reclamar, gritar, e assim segue sem nunca pedir socorro, pois não há nada a pedir, apenas existem coisas a reclamar: “se tudo tivesse sido como deveria ter sido feito, nada de ruim estaria acontecendo”. Não se sente como problema, e quando questionado vê mais incompreensão e dificuldade dos outros, vê como mais uma vez não foi considerado, nem ajudado. A culpa é sempre do outro, o problema é sempre do outro. É como se as plantas que precisam de suporte, de um muro ou de árvores para apoiar-se e viver, falassem: “não haverá flores, não haverá alegria, não posso crescer, não tem onde sustentar, e necessito isso para que eu floresça e alegre o mundo”.

Quando a dependência é negada e transformada em obrigatoriedade de ajuda, surge vitimização: direitos inquestionáveis e merecidos. Essa colocação resume bem a dinâmica da carência afetiva.

Na maioria das correntes psicológicas, como a Psicanálise por exemplo, se entende carência afetiva como resultado de um processo deficitário de relacionamento afetivo, principalmente baseado nas figuras paterna e/ou materna. Na Psicoterapia Gestaltista, ao contrário, a carência afetiva é entendida como intrínseca ao ser humano. E quando digo que a carência é intrínseca ao ser humano, estou dizendo que ela é tão configurativa do humano quanto são os olhos, a boca, os braços, as pernas etc. Isso significa afirmar que carência afetiva é a necessidade ou possibilidade de relacionamento com o outro. Se o outro for percebido como alguém que vai satisfazer desejos, resolver dificuldades, preencher vazio temos um grande problema, pois o carente fica sujeito a sofrer, reclamar, fazer tudo para se aproveitar do outro, iniciando uma escalada de ansiedade e possíveis frustrações, medos e competitividade.

O outro é transformado em objeto toda vez que buscamos nele o que nos falta, nos completa, o que desejamos e o que sonhamos, e isso estrutura a carência afetiva enquanto necessidade de relacionamento, deixando assim de ser a possibilidade de relacionamento intrínseca ao humano. As necessidades de adaptação e satisfação são referenciais que limitam e filtram as possibilidades de relacionamento. Essas estruturas limitadas transformam as possibilidades relacionais em necessidades de sobrevivência. A carência afetiva deixa de ser uma possibilidade de relacionamento e passa a ser uma necessidade do outro, um desejo, uma adaptação, uma urgência. É uma distorção perceptiva decorrente da não aceitação das próprias impossibilidades e limites, e desse modo são construídas as vítimas, os que se acham mães e pais protetores, tanto quanto os que se sentem infalíveis, não reconhecidos e ignorados naquilo que pensam ser seus direitos inquestionáveis e merecidos.