O milagre da arte é o que está entre o olho e o objecto, que é a percepção do artista.
(...). Acho que a infância de uma pessoa é a sua pátria.
A sombra que eu projecto acompanhar-me-á toda a vida.
Para mim, a pátria não é um território, nem uma fronteira, nem uma bandeira.
É uma ideia, é um ponto de vista. Vai além de uma questão geográfica.

(Alejandro González Iñárritu)

O que define um território? Fronteiras, topografia, marcos? Há territórios efetivos, afetivos e também ficcionais. É o caso das famosas terras criadas pelo escritor argentino Jorge Luís Borges: Tlön, Uqbar, Orbis Tertius. No conto com este nome, Borges fala de territórios da memória, ou da memória de territórios, mesmo daqueles que nunca existiram: “(…) Agora tinha nas mãos um vasto fragmento metódico da história total de um planeta desconhecido, com suas arquiteturas e seus debates, com o pavor de suas mitologias e o rumor de suas línguas, com seus imperadores e seus mares, com seus minerais e seus pássaros e seus peixes, com sua álgebra e sue fogo, com sua controvérsia teológica e metafísica.”

O texto escrito sempre foi um espaço de pródigas invenções, em que planetas inteiros vieram à luz, em que cosmologias se compuseram. Nas artes plásticas, as invenções são mais contidas – uma imagem é mais imediatamente apreensível, sobretudo quando é figurativa, mimética.

O território pintado ou desenhado é mais evidente porque se torna visível. Os territórios de Manuel Baptista, ao contrário, negam a visibilidade e o reconhecimento imediato ao público. Somos confrontados com linhas, curvas, sombras e espaços vazios que podem ser traduzidos como linhas, curvas, espaço vazios – por quem não tem a capacidade de acompanhar o rasto do gesto do artista que fica impresso no papel. Os territórios estão lá. Talvez apenas um território, o Algarve, ou muitos territórios que não são representações de espaços reais, mas visões do artista. Como disse o cineasta Inãrritu, “O milagre da arte é o que está entre o olho e o objecto, que é a percepção do artista.” O milagre dos desenhos apresentados nessa exposição de Manuel Baptista está exatamente naquilo que não nos é permitido ver, nas zonas encobertas, nos traços que nos faltam para definir, de forma clara, uma fronteira, um marco, um território plenamente reconhecível.

Os desenhos aqui expostos fazem parte de diferentes séries e foram trabalhados também em diferentes temporalidades. No entanto, todos surgem do labor de um artista inquieto que não cessa de fazer experiências, de preencher papeis com esboços, ideias, de fazer e de refazer projetos: a mão do artista não para, desliza na superfície criando formas, sugerindo imagens, plasmando sombras. A sua obra, e sobretudo os seus desenhos, podem ser caracterizados pela ideia de desconstrução e de recomposição das superfícies. O território é sempre aludido, nunca explicitado. Entrevemos montanhas ao longe, falésias, curvas e acidentes geográficos. Pode afirmar-se que os seus desenhos criam uma caligrafia própria e que, com essa caligrafia, o artista projeta mapas, países, territórios da memória que se confundem com o território que habita mais frequentemente e que nele habita, mesmo quando não está nele – o Algarve.

O invisível não é o mesmo que o inexistente – está lá, mas não se dá a ver. A grande mestria de Manuel Baptista é deixar entrever, mesmo sem desvelar, o território mais recôndito do gesto artístico, daquele gesto único e irrepetível que plasma no papel universos, que insinua, com os traços ora robustos, ora delicados, muito mais que um território limitado por marcos e fronteiras. O artista, através dos seus desenhos, dá-nos a ver um mundo.