A luz amadurece as pedras e os figos nos lados dos caminhos adoça as alfarrobas fende a casca cinzenta das amêndoas e desprende-as varejamos as que ficam presas de leve aos ramos; no armazém da casa amontoadas descascar as amêndoas o verão.

(Gastão Cruz)

O espaço, ou melhor, o território, é um tema presente nas Artes, especialmente desde a década de 60. A temática foi sendo intensificada pelo advento da globalização que, de acordo com Stuart Hall, quanto mais viajamos e consumimos imagens de outros lugares, mais as nossas identidades tornam-se “desvinculadas – desalojadas – de tempos, lugares, histórias e tradições específicas (…)”1.

A homogeneização cultural é um fenômeno que enfrentamos e contra o qual os artistas sempre resistiram. Que fique claro que a resistência à homogeneização nada tem a ver com um retorno ao nacionalismo romântico, mas, sim, com a recuperação de sentidos que se perderam, de lugares que ficaram esquecidos ou marginalizados, de elementos que compõem um território/lugar – para pôr em causa a própria contemporaneidade e o insano movimento, real e virtual, a que nos submetemos quotidianamente.

Marc Augé fala de não-lugares, de lugares de passagem, de lugares entre, mas fala também de hibridações, tema caro ao teórico Homi K. Bhaba. A hibridação é um fenômeno que nasce do movimento de culturas, de povos, de ideias, possibilitando assim o surgimento de uma terceira via – fruto de um diálogo incessante e produtivo, entre os que permanecem e os que são obrigados a partir, ou entre os que habitam o centro e os que são relegados à periferia. Nem sempre a terceira via acontece, o diálogo é esmagado pela voz que se autodetermina como dominante. E é nesse instante que a arte se insurge e propõe-se, ela mesma, como um caminho viável, como uma terceira via – como lugar em que o encontro acontece. Como escreveu Katia Canton:

No emaranhado disperso da vida quotidiana, afinal, procuramos o eu através do outro, rastreamos nossas histórias e abrimos nossos diários íntimos na tentativa de nos oferecer verdadeiramente para o mundo. É essa troca genuína de memórias e de sentidos que buscam os artistas contemporâneos2.

A ideia de trazer artistas do Algarve à Bienal de Cerveira não surgiu apenas pela possibilidade que se apresentou de fazer uma curadoria com artistas que nunca expuseram no evento, mas a de trazer artistas dos antípodas ao encontro com um território também às margens da zona central, para promover assim um diálogo construtivo e instigante.

Os artistas convidados - Ana Rostron, Luís Marques, Miguel Cheta, Milita Doré e Vasco Marum Nascimento - têm trabalhado com e sobre o território das mais diversas maneiras, com diferentes suportes e linguagens, sempre nos surpreendendo com a força, e paradoxalmente, a fragilidade das suas obras. Por delicadeza perdi a vida, disse Rimbaud, e a delicadeza é o traço constante que liga cada obra apresentada. Delicadeza usada para falar de um território, o Algarve, espaço físico e metafórico, espaço à margem e relegado a um destino único – o turismo. Espaço polifacetado, mas unificado no imaginário do outro, daqueles para quem o Algarve é um não-lugar.

Edward Said fala-nos de uma “geografia imaginária ou imaginativa”, que é a geografia dos que escreveram a história no Ocidente e a partir dele. Os territórios circundantes, ou não-ocidentais, não são descritos como espaços concretos, mas sim com termos comparativos numa comparação não balanceada: os outros são os estranhos, os estrangeiros, os não civilizados ou exóticos. É possível falar de uma geografia imaginária quando o Reino de Portugal se refere ao Reino dos Algarves, terra dos mouros, último território reconquistado e atrelado a um país, tão pequeno e tão diverso. O discurso é composto de códigos de linguagem - e nenhuma linguagem é neutra. E é nesse ínterim que atua a arte.

Ana Rostron, desde o princípio, fez das suas obras um constructo de memórias, de dejetos, de sobras. Objetos ou fragmentos de objetos que perderam a sua função e foram deixados, ao acaso, pelo território. Cada coisa adquire um significado, ou múltiplos sentidos, quando a artista interfere e transforma seu gesto de recolectora num gesto criador. A peça que nos propôs remete-nos ao minimalismo de James Turrell ou às esculturas de Dan Flavin. Mas, ao contrário desses artistas, a luz, matéria-prima de ambos, é apenas insinuada pelo seu invólucro na obra de Ana Rostron. Invólucros sem função, desgastados, lâmpadas que já não iluminam, mas que se convertem em matéria e em suporte pelas mãos da artista.

A obra de Miguel Cheta é, antes de tudo, uma tomada de posição do artista sobre o território. Também ele um recolector, as suas imagens, de origem fotográfica, são transmutadas em desenhos, esculturas e vídeos. Como diz o artista, primeiro ele vê – fotografa mentalmente o seu entorno e, a partir das imagens que constrói, surgem desenhos, relevos, texturas. Assim surgiu o Sunset de Mafalda, peça central de um tríptico composto por um vídeo e dois desenhos/colagens, conta-nos uma história em loop. Uma história que se repete a cada verão, uma história simples – a travessia na maré baixa e o retorno, quando sobe a maré. Uma travessia que representa um movimento contínuo, tornando o espaço que ocupa um não-lugar. O mar/rio é um lugar de passagem, uma via, um caminho que se percorre à procura do sol e de um lugar na areia da praia.

Há uma relação intrínseca entre corpo e território. O trabalho de Milita Doré é, sobretudo, um trabalho sobre o corpo, sobre os corpos, sobre a própria noção de corporificação da obra num espaço. Um mapa delineado, feito de linhas sobre tecido, dá-nos a ver um território geograficamente expandido – um norte que aponta para cima e um sul que se descai. Entre uma e outra ponta, o percurso é longo, e, para não se perder, Milita Doré prefere seguir “rolando o caminho” – peça feita de tiras de algodão, remete-nos ao fio de Ariadne e também à ideia de laços que se podem estreitar/estabelecer. Uma maneira de não deixar que o sul perca o norte e vice-versa.

Os quadros de Luís Marques remetem-nos também ao território, mesmo que não de maneira direta e programática - sua obra mais recente é o resultado do percurso do artista à procura de técnicas e de materiais que expressem, ao mesmo tempo, o inefável e o matérico. Como Richard Long, Luís Marques traça um percurso no território e constrói invisíveis arquiteturas, frutos de uma geografia imaginária, tanto interna quanto externa. Decidido assim a deixar marcas subtis, contrariando a arquitetura espúria, compostas de betão armado e de ferro que reveste o litoral algarvio. Construções que ocultam, e destroem, o território, revestindo-o de uma camada sintética, lugar do mesmo, do que está em toda a parte e que não pertence a nenhum lugar. O artista propõe uma viagem dentro da sua própria casa, se chamarmos casa ao espaço que nos envolve, ao lugar em que nascemos, que tem existência concreta, com suas rugosidades, texturas, como os materiais que o compõem.

Enquanto eu dava aulas, Vasco Marum Nascimento fazia origamis. As mãos, e o pensamento, inquietos, já diziam do artista que estava ali sentado, placidamente, a apreender tudo com as mãos. Entre a fotografia, o desenho e a escultura, a imagem surge – discreta, quase invisível, insinuada. Georges Didi-Huberman, ao refletir sobre a aura benjaminiana, fala-nos de imagens que operam uma dialética do lugar: “próximo e longínquo, diante e dentro, táctil e óptico, aparecendo e desaparecendo, aberto e fechado, esvaziado e saturado (…)”3. São imagens que contêm uma sensação física do tempo – em que a marca da sua passagem fica inscrita e reverbera, recriando assim a aura na era das imagens reprodutíveis. As séries que o artista apresenta, “Desenhos na Montanha”, peças em gesso e fotografia, põem em prática a dialética do lugar – ao mesmo tempo cheio e vazio, presença e ausência.

Os artistas do sul do Sul trazem ao norte do Norte a sua presença feita de obras, feita de arte. De obras de arte que refletem sobre o território, sobre a identidade e os corpos que a reclamam. Como disse Katia Canton, é essa troca genuína de memórias e de sentidos que buscam os artistas contemporâneos. Uma troca que se pretende dialógica, rítmica, produtora de novos e diversos sentidos. Capaz de juntar o país pelas pontas, e configurar, através da arte, novos centros.

Notas

1 Stuart Hall, A Identidade Cultural na pós-modernidade. Rio de Janeiro, DP&A, 2000, p. 75-6.
2 Katia Canton, Espaço e Lugar. São Paulo, Martins Fontes, 2009, p.35.
3 Georges Didi-Huberman. Diante do tempo: História da Arte e Anacronismo das Imagens. Lisboa, Orfeu Negro, 20217, p. 319.