Desde que o mundo é mundo os mistérios existem e habitam no imaginário coletivo da humanidade. Quando Deus disse " Faça-se luz" tudo ficou bem mais claro! Será? Nem tudo, não é? Ainda temos muito a desbravar, e, enquanto isso não ocorre, colocamos medo e esperança nas nossas vivências. Crença é aquilo que a gente suspeita em acreditar para trazer um conforto, uma segurança ou mesmo uma proteção diante dos imprevistos do dia a dia.

Para o professor pernambucano Getúlio César, em seu livro “Crendices suas origens e classificação”, Crença “é incongruente e insólita, gerada pelo medo doentio de pessoas que possuem religiosidade exaltada. O medo é o grande gerador dos crendeiros: medo do inferno, medo do diabo, medo do purgatório, medo de pecar, medo de ser perseguido por espíritos inferiores, medo de feitiço... Todas essas fobias criam pessoas crendeiras e supersticiosas e, concomitantemente, um sincretismo de crenças engendradas para transformar pecados em virtudes.” (Getúlio Cesar, 1975, p.17)

Na verdade, o crendeiro, como diz Getúlio César, é um fabulador. Arrebatado pelos mistérios e tentado por dúvidas incessantes, o fabulador cria sempre uma atmosfera de desconfiança. Diz ainda Getúlio César, “que o crendeiro se esquece que o pecado só aparece quando a lei é transgredida. E, da vacilação da pessoa surge a crença.” Será? Poderíamos dizer que o fabulador se reatualizou. Fez uma grande parceria com a tecnologia, é devoto do santo “Wi-fi” e vive criando memes e fake news de narrativas exóticas e aleatórias.

Quem pode nos ajudar é o professor de psicologia da universidade de Havard, o sensacional, Steven Pinker. O professor Pinker indaga – “Como é possível que a mesma espécie, que em menos de um ano desenvolveu vacinas contra a Covid-19 produza tamanha quantidade de notícias falsas, charlatanismo médico e teoria da conspiração?” O referido professor ainda indaga sobre a racionalidade por que parece está em falta e por que é importante?

Para tanto, estamos sempre querendo driblar a ordem. Desse modo, as crenças, as superstições, invadem nosso imaginário revelando os costumes e identidade de um povo. Como diz Mário Souto Maior, são os mistérios do faz mal! Para espantar o medo e viver conforme a ordem estabelecida muita coisa na vida pode fazer mal. “Faz mal dar sapato usado: dá azar. Faz mal dar lenço de presente: acaba amizade. Faz mal emprestar (é melhor dar) sal: dá atraso na família da casa. Faz mal deixar uma tesoura aberta: é agouro, porque a tesoura vai cortar a mortalha de alguém da casa. Faz mal limpar a teia de aranha: traz infelicidade... E por aí segue uma lista de mistérios do faz mal coletada por Mário Souto Maior.

As superstições invadem nosso imaginário revelando os costumes e identidade de um povo

Eu mesma nem dou conta de tanta superstição que minha mãe falava para mim. Não podia deixar os chinelos emborcados porque a mãe morria. Deus me livre! Cuidado com o papa-figo e com o homem do saco que rouba crianças! Assim, fui criando meu universo de mistérios do faz mal. Acredito que a maioria das pessoas lembrem de alguma superstição.

Até hoje, jogadores, empresários e artistas utilizam as superstições para garantir sua fé e sua sorte no trabalho. A superstição vem dos costumes que foram enraizados e gravados no coração como diz Rousseau, portanto, muito difícil e complicado de sair de nossos pensamentos e atitudes. Já deixei de comer tapioca antes de viajar, porque anuncia presságio ruim. Pelo sim e pelo não, é melhor evitar! Estamos e somos vulneráveis aos imprevistos, de todo modo é melhor não ir de encontro à oscilação da fé.

Então, para facilitar o estudo das crenças Getúlio César classificou as crenças como superstição, que nasce dá espontaneidade do povo e do imaginário coletivo. Como escutar uma coruja à noite é agouro de morte, ver um urubu pode trazer azar, quebrar espelho, não traz sorte, entre outros.

Também para adquirir proteção contra o mau-olhado existe o amuleto que cada pessoa pode carregar o seu e que pode ser de cunho religioso como medalha, escapulário, santinhos ou mesmo um patuá. Não esquecer do ex-votos, das rezas e das excelências atrelada a todo tipo de orações para facilitar a burocracia com o cosmo. Bem assim, temos as rezadeiras ou benzedeiras que rezam para curar doenças de crianças, fraqueza, dores da alma e da vida e do mau-olhado.

As superstições variam de pessoa para pessoa, e é bom ter cuidado para não resultar em exageros. Isso ocorre quando o medo é cristalizado. Daí, passa a ser um distúrbio que prejudica a convivência humana no dia a dia. Há alguns famosos supersticiosos lembrados por Getúlio César: “Napoleão, quando tinha vinte e sete anos, no meio de afanosas lutas na Itália, percebeu no turbilhão de um embate que no bolso se quebrara o vidro que protegia a miniatura de Josefina. Empalideceu horrivelmente, parou o cavalo e disse: “quebrou-se o vidro! Minha mulher está doente ou é infiel.”

Prossigamos! Latino Coelho retrocedia de uma viagem ou passeio se lhe aparecesse um gato preto. Conta Humberto de Campos que o escultor maranhense Celso Antônio presenteara Coelho Neto com uma estatueta de gesso de Vitor Hugo. Durante a conversa que se seguiu com a chegada do artista, o nosso escritor caiu em uma espécie de apreensão para desabafar, quando o apresentador se quis despedir. Disse-lhe Coelho Neto: ‘Você vai deixar essa estatueta? Leve-a o gesso me traz dissabores...” (G. César, 1975, p.24) Vai entender, não é?

São tantas coisas que alimentam o universo do imaginário que fica difícil conviver sem superstição. Eu mesma carrego o meu amuleto na minha bolsa dos importunos imprevistos. Para tanto, nem mesmo os cangaceiros corriam das superstições. O cangaceiro Antonio Silvino não acreditou no aviso que a alma de seu irmão apareceu para ele alertando sobre um determinado caminho. Por sua vez, Lampião carregava a oração da Pedra Cristalina1 para afastar animais peçonhentos e de todo mal.

Tempo atrás li sobre um museu na Europa que fazia uma atividade onde as pessoas traziam o seu amuleto. Talvez seja pelo viés da proteção que passamos a conhecer as pessoas. Tive um professor chamado Paulo de Jesus, na Universidade Federal Rural de Pernambuco, que começava as aulas com o seguinte questionamento - Qual é a sua esquisitice? Bem apropriado para os dias de hoje no uso aparente das narrativas.

O mundo contemporâneo, particularmente com o advento da internet e das redes sociais, alimenta um tipo de ilusão coletiva

Diz o professor e pesquisador Renato Ortiz “Pode-se ainda argumentar que a ciência é também uma narrativa e seu relato não invalidaria os outros. Estaríamos assim diante de uma arena de narrativas concorrente entre si, cada uma dela com a sua verdade. De certa maneira, é esta indefinição que contribui para o êxito e a conveniência na utilização do termo. O mundo contemporâneo, particularmente com o advento da internet e das redes sociais, alimenta um tipo de ilusão coletiva. Qualquer coisa dita com ênfase e paixão, torna-se convincente.” (Renato Ortiz, Artigo – A insustentável leveza que há nos relatos. Ideias sobre os usos contemporâneos do termo narrativa. P. 20. Suplemento Pernambuco, abril 2022).

Pois bem, as crenças funcionam assim, pelo impulso das paixões dos crendeiros. Aqui no Brasil, principalmente no Nordeste na época das festas juninas, temos os costumes de realizar superstições. Muitas delas vindas dos solstícios de verão da Europa, dos povos ágrafos e de suas colheitas que foram propagadas por narrativas apaixonadas pelos colonizadores de várias regiões.

E numa mistura de culturas africana, indígena e europeia construímos um imaginário coletivo do ciclo junino. Tudo começa com Santo Antônio, o chamado Santo Casamenteiro. A moça começa fazendo a trezena de Santo Antônio, depois coloca o santo de cabeça para baixo até o noivo aparecer.

No município de Barbalha, Ceará, existe a festa das solteironas, onde muitas simpatias e superstições são feitas para arrumar um bom casamento. Temos também em Caruaru, Pernambuco, o melhor São João do mundo e em Campina Grande, Paraíba, o maior São João do Mundo. E, depois vem as fogueiras, que é uma marca forte das festas de São João.

Hoje, com o aparecimento da covid-19 e também pela proteção das árvores e do planeta, a fogueira se tornou virtual. Lembro que a fumaça ardia nos olhos e as roupas e os cabelos ficavam com cheiro de queimados. Mas, você poderia jogar na fogueira um papel escrito com tudo que aconteceu de ruim para ser queimado, em nome de Jesus! Jogar uma moeda na fogueira para no outro dia entregar ao primeiro homem que visse e perguntasse o nome do dito, seria o do seu futuro marido. Colocar uma faca na bananeira para adivinhar o nome do marido também eram superstições das moças do Nordeste. Escrever o nome de vários rapazes num papel amassado e jogar numa bacia de água e pela manhã verificar no papel que abriu o nome de seu futuro marido. Soltar fogos, balões que hoje é proibido em algumas regiões, também sinalizavam o ciclo junino.

Lembro como se fosse hoje o cheiro do milho assado na fogueira na casa do meu avô. Ao som do forró arrasta pé, as brincadeiras começavam. Precisamos compreender que até o astronauta que pisou na lua colocou o pé direito para dar sorte, dizia Mário Souto Maior. Então, “A crença é onipresente, está em todos os lugares, vive de sua insustentável leveza de ser, mas é preciso circunscrevê-la na sua falsidade mesmo a realidade tendo passado ao largo de sua existência. “(Ortiz, 2022, Suplemento Pernambuco)

As narrativas surgem das invenções, dos acontecimentos, das crenças e dos costumes. Há uma dinâmica polissêmica que envolve o enredo nas histórias contadas pelo povo. Digamos que a crença seja um modelo de narrativa entre o tempo da vida e o tempo do mundo. Talvez a crença tenha o perfume da fé banhada pelo descuido da realidade.

O imprevisto sempre existirá em nossas vidas, ele se alimenta do nosso imaginário, é através dele que as crenças renascem, por isso, é possível viver sem crenças?

Referências

Cesar, G. Crendices suas Origens e Classificações. Ministério da Educação e Cultura: Rio de Janeiro, 1975. Ortiz, Renato. Artigo – A insustentável leveza que há nos relatos. Ideias sobre os usos contemporâneos do termo narrativa. P. 20. Suplemento Pernambuco, Nº 194, abril 2022). Mário Boaventura Souto. Os mistérios do Faz Mal. Recife-PE,20-20. Comunicação e Editora, 1996.