Lendo Baudrillard - Cool Memories II - deparei-me com a afirmação:

Ocupar-se de si mesmo é a ilusão cômica de nosso tempo. Ocupar-se dos outros é sua ilusão trágica.

Além do antagonismo entre cômico e trágico, Baudrillard também coloca o eu e o outro como antagônicos. Espacialmente visualizado, o outro é o meu antagônico tanto quanto é meu semelhante ao me continuar enquanto encontro. O outro como continuidade estabelece referenciais igualitários dentro dos quais eu sou o outro, assim como o outro também me situa e esclarece. Isso é a própria explicação de grupo, tanto na sua pluralidade estruturante quanto em sua unidade identificadora: o menor grupo é o que o indivíduo faz com ele próprio, com ele mesmo. Nesse sentido pensar o outro é se pensar e vice-versa. Essa reversibilidade dinâmica estrutura a pluralidade, o grupo, e consequentemente as sociedades. Quebrar essa totalidade, essa gestalt - eu e o outro enquanto Figura/Fundo - é trágico e igualmente ilusório e cômico.

A oposição entre cômico e trágico é uma antítese, mas também podemos pensá-la como continuidade do excesso de drama carregado em cada vivência. Quase que por exaustão oscilamos do trágico ao cômico e vice-versa.

Quando o indivíduo se autorreferencia ele fica reduzido aos seus desejos, medos, metas, cogitações. Ao descontinuar seus processos relacionais, criando supostas e quiméricas estruturas, ele se insere na ilusão, ele vive nos sonhos, nos medos e desejos. Suas apreensões criam padrões que vão funcionar como algoritmos que tudo açambarcam. Viver em função de economizar para realizar o "sonho da casa própria", por exemplo, pode ser desvitalizador, pode criar privações, dificuldades de nutrição, de recreação e participação no cotidiano. Esperar o "príncipe encantado", esperar o amor necessário que transformará tudo, é também ficar impermeabilizado ao que ocorre. É cômico e é trágico. O ocupar-se de si mesmo como caminho de realização e satisfação constrói barreiras de egoísmo, medo e desespero que geram afastamento, deixando o indivíduo isolado. Esse viver engaiolado e protegido, enfraquece, mutila, pois afasta o indivíduo de seus referenciais nutridores e criativos: os outros. Diante desse quadro, dessa frequência problemática de existência, muitos arbitram que cuidar do outro, ocupar-se do outro é a solução. Surgem revolucionários, religiosos e espiritualistas dedicados a salvar a humanidade, propiciando comida, educação, prazer, bondade e transcendência das dificuldades.

Não existem paraísos, não existem eldorados. Negar o existente e querer transportar pessoas para outros lugares é estabelecer processos alienantes. É trágico o esvaziamento que se consegue ao tentar "salvar almas" ou melhorar condição de vida dos outros. Almas salvas, estômagos preenchidos, vidas bem-sucedidas não são suficientes para açambarcar a complexidade, a dinâmica motivacional do ser humano. O próprio ato de criar convergências - almas salvas e estômagos preenchidos - é alienador. Direcionar toda a existência para consecução de objetivos é estabelecer processos arbitrários nos quais os condutores são autoridades, grupos, instâncias superiores que dirigem e organizam. Sem autonomia os espetáculos são orientados e executados. Um dia riem, outro dia choram. Esse estar ao sabor das ondas, esse não ter autonomia é o que configura a grande tragicidade cômica, ou a comicidade trágica que habita nosso horizonte social (abundante e identificável em inúmeras ações políticas criadoras de espetáculos tragicômicos), ou seja: fabricar e habitar sonhos ampliadores ou amesquinhadores das realidades vivenciadas deixa à mostra palhaços, títeres, domadores e marionetes que habitam nosso mundo.

Trágico e também cômico é viver sem autonomia, é ser transformado em massa a ser manipulada diariamente na construção de cenários que prometem maravilhosos mundos, infinitas transformações do que é ruim em deserto ou em bom e fértil. Comprar e vender ilusões é cômico, é trágico, aliena e desvitaliza, destrói e massacra.