Talvez, não façamos ideia do surgimento da cultura popular, pois toda invenção e manifestação que vem da observação e riqueza do imaginário, possibilita mudança na vida das pessoas e nas suas relações sociais. Para tanto, refletiremos primeiramente sobre a cultura. É sabido que a cada novidade, o mundo se transforma. E, em época pandêmica, refletir sobre a ideia e a força que a cultura popular exerce na vida das pessoas é um ato de uma nova consciência. Sem esquecer que muitas foram e são as invenções que transformam e transformaram a humanidade e seu comportamento. Temos a criação da roda que facilitou a locomoção, também temos a máquina a vapor que revolucionou o modo de vida familiar pela construção das estradas de ferro. Mais uma vez, a locomoção sempre atiçou e atiça os seres humanos. Depois, com o surgimento da eletricidade, os padrões da família se curvavam diante das imagens exibidas na televisão em preto e branco. E, com o aparecimento da automação as relações sociais vertiginosamente passaram a conduzir o tempo e o espaço em uma só dimensão.

Embora, segundo o antropólogo Clifford Geertz ressalta em seu artigo “A transição para a humanidade1”, que o ser humano tece, produz e reproduz com a caça e com a confecção de objetos para sobrevivência a partir de uma funcionalidade, a sua participação na cultura. Ou seja, há um ligamento que a cultura produz para adaptação das comunidades entre o ambiente e a reminiscência.

Há um domínio adaptativo que faz a cultura ser a porta da singularidade para à diversidade. E, sabem porque a cultura é esta porta? Porque nasce do imaginário para recriar saberes entre a convivência da realidade com o simbólico. A cultura é a porta para socialização, que, como afirma Roy Wagner, refina o ser humano em todos os sentidos. “Compreender a cultura popular como uma construção ou uma invenção, para utilizar o termo de Roy Wagner (2010), como um processo temporal e dinâmico, em vez de tomá-lo como algo dado, restrito ao local de origem ou a um modelo abstrato fixo e imutável, com origem essencial e autêntica, nos permite perceber que o sistema simbólico que se forja na forma de ritos, mitos, alegorias, danças, cantos, artesanato e folguedos é resultado de um processo interativo em que praticantes, pesquisadores, Estado, Igreja, imprensa, entre outros autores , estão envolvidos.2” (Giovannini Jr, 2018, p. 140).

Como exemplo temos os Mestres da cultura popular, os fazedores de cultura, os brincantes que são decifradores de códigos entre o céu e a terra. Transformam o mundo pela singularidade na diversidade. Por isso, a cultura une e eleva a humanidade. Poucos percebem o valor da cultura em nossas vidas. Em tudo que fazemos há um grau de simbólico, por isso, muitas vezes difícil de compreender o processo simbólico, eles são recriados e reatualizados. Temos como exemplos alguns sinais e ações no dia a dia, como antes de entrar no mar, algumas pessoas se benzem ou quando o açúcar fica molhado ou a pedra de sal derrete é sinal de chuva. Há vários recados de Deus que não percebemos. Para quem ainda não compreendeu, assistam ao filme - Alguém lá em cima gosta de mim3” que retrata o simbólico pela comédia através de um gerente de supermercado que começa a conversar com Deus. Digamos que a cultura seja um sistema de símbolos que o povo usa para o trabalho e a vida. Assim a cultura é inesgotável porque passeia entre o que é livre e o que é subversivo.

Para refletir, a cultura popular que penetra no campo do sagrado pela vivência do povo em suas diversas expressões e manifestações levanta sérias discussões imprecisas ocasionando diversos conceitos e teorias sobre sua existência. No verbete do dicionário do Patrimônio Cultural do Instituto do Patrimônio Histórico Artístico e Nacional - IPHAN4 encontra-se que:

“...A cultura popular, como expressão cultural dos segmentos menos favorecidos, apartados do poder político e econômico, manteve-se em foco durante muito tempo, gerando contraposições, tais como erudito x popular, moderno x tradicional, hegemônico x subalterno. Canclini (2013) acrescenta a cultura de massa nessa discussão, associando o termo ‘popular’ tanto à noção de povo quanto à noção de popularidade, referindo-se ao que agrada a muitos e alcança altos índices de venda, principalmente em decorrência das ações promocionais da indústria cultural. Essas acepções divergentes em torno do termo concorrem para o debate tradição x inovação. O popular atribuído aos segmentos sociais não afetados pelo cosmopolitismo das elites e pautados na preservação das tradições repousa sobre a permanência das expressões culturais, memória e testemunho da uma identidade cultural. Já o popular produzido pela indústria cultural padece de uma rápida obsolescência, privilegiando sempre o novo... Nos estudos interdisciplinares mais recentes, a cultura popular aparece como um modo de vida marcado por uma complexa interação de fatores socioculturais, econômicos, políticos e ecológicos, esmaecendo a divisão entre erudito e popular. Uma das maiores dificuldades continua a ser a arbitrariedade dos limites considerados eficazes para circunscrevê-la.”

Bem interessante as nuances que envolvem a polissemia na cultura popular. De exótica, bizarra, ingênua, espelho da alma nacional foi impulsionada pelos pesquisadores curiosos aos povos ágrafos. Daí, os estudiosos, amantes dos diferentes modos de vida, foram influenciados pelos românticos Jacob e Wilhelm Grimm para coletarem a partir da literatura e história oral as tradições existentes no meio rural.

“Como aponta Ortiz (1985), até meados do século XVII a fronteira entre cultura popular e cultura de elite não estava bem delimitada, porque a nobreza participava das crenças religiosas, das superstições e dos jogos realizados pelas camadas subalternas. É claro que o mesmo não se pode dizer com relação ao povo no universo das elites. No entanto, o que vai interessar para este artigo é que pouco a pouco começa a ocorrer o distanciamento entre a cultura de elite e a cultura popular, intensificando o processo de repressão da primeira sobre a última. Os motivos que contribuem para isso na Europa são, principalmente, de ordem política. A implementação de uma política de submissão das almas com base na doutrina oficial definida pela Teologia, feita por parte da Igreja tanto católica como protestante e o processo de centralização do Estado, ou seja, instituição de uma administração unificada dos impostos, da segurança e da língua, podem ser identificados como os principais fatores que levaram à separação entre as duas culturas apontadas acima. Ortiz (1985) destaca ainda a crescente preocupação das autoridades com práticas que geram protestos, tumultos, como o carnaval entre outras manifestações populares. Dessa forma, o povo entra no debate moderno e passa a interessar para legitimar a hegemonia burguesa, mas incomoda como o lugar do inculto. Teve início nesse período o processo de desencantamento do mundo, baseado em valores de universalidade e racionalidade, e valorização da cultura burguesa moderna em detrimento da cultura popular tradicional.”5

Havia e há um grande deslumbramento em relação ao comportamento, costumes, língua de povos originários e das comunidades domésticas do meio rural. Digamos que no início do século XIX a preocupação era na expansão do capital, nos meios de transportes, nos avanços tecnológicos dos meios de comunicações entre outros, que acabaram por acentuar a distância com as culturas populares. Daí apareceu a seguinte questão sobre a busca da identidade, preocupação do pesquisador Silvio Romero nos estudos das manifestações populares na relação entre as etnias branco, negro e índio. Preocupação também do professor Florestan Fernandes com o saber tradicional e sua dimensão.

Então, o popular seria uma inquietação dos intelectuais em situá-lo no âmago científico para compor os limites epistemológicos de tradições herdadas que facilitaram na construção dos acervos e dos registros.

Consideramos que a cultura popular transforma mito em ação, que é um ritual pela repetição de atos de caráter sagrado. Por sua vez, a cultura popular reinventa narrativas pelos ritos e rituais. Por isso, ela é polêmica, porque faz a ponte com a sociedade de maneira lúdica, exibindo a riqueza do imaginário popular.

A cultura popular com suas festas e folguedos não se faz isolada em um local distante no tempo e no espaço, mas num processo, algumas vezes contínuo, outras descontínuo, de interação entre grupos sociais de origens distintas e motivados por convenções simbólicas diferentes. Nesses encontros, muitas vezes conflitantes ou complementares, tais sistema simbólicos são colocados em questão, são repensados, reavaliados e recriados em forma e significado.6

(Giovannini Jr, 2018, p140)

Assim, salientamos que os ritos e rituais impulsionam a cultura popular em sua forma singular agindo como um caleidoscópio. Por isso, encontramos vestígios em quase todas manifestações populares de algo parecido, sejam nos gestos, nas loas, nas narrativas, nas danças, no artesanato ou nos festejos. Na verdade, estamos mais interessados na diferença do que na unidade. Há na cultura popular uma ressonância que vai espalhando singularidades na diversidade.

Ou seja, queremos limites epistemológicos para a cultura popular ou para o folclore que estão sempre em ebulição e rebuliço. Criemos então, metodologias que careçam de pelo menos, fortalecer a dinâmica da cultura popular. Porque o que as culturas populares querem é o compartilhamento de sua intimidade com a sociedade pelos ritos e rituais.

Referência

1 Transição para a humanidade.
2 Cavalcanti. M.L.; Correa. J. (orgs). Enlaces: estudo de folclore e culturas populares Rio de Janeiro: IPHAN 2018, p.140.
3 Alguém lá cime gosta de mim.
4 Dicionário do Patrimônio Cultural.
5 Cultura Popular: Entre a tradição e a transformação, Vivian Catenacci.
6 Cavalcanti. M.L. ;Correa. J. (orgs). Enlaces: estudo de folclore e culturas populares Rio de Janeiro: IPHAN 2018, p.140.