Completamos um ano de impasse imposto por uma doença ameaçadora, de rápida disseminação, alta estatística de casos fatais e desafiadora necessidade de desenvolvimento de tratamentos, apesar das vacinas existentes. É uma pandemia e estarrece ver, saber ou ler sobre aglomerações de pessoas que ignoram não só as restrições impostas às atividades públicas, mas, principalmente, a evidência da gravidade da covid-19.

A recusa a manter o confinamento - isolamento social sugerido ou imposto pelos governos - existe por uma série de razões: desde a vivência imperativa do desejo de aproveitar as festas, os shoppings, as academias, os bares, até a necessidade de sobrevivência dos que não têm renda fixa, assim como os que, mesmo garantida a sobrevivência, não aceitam perder lucros. Não ignoremos também os que simplesmente pensam: “antes de morrer vou aproveitar”. Nesse contexto de várias justificativas, atitudes prepotentes são estruturadas tais como: imaginar-se imune ao coronavirus por já ter sido contaminado, ou considerar que resiste ao mesmo pois é forte e a covid-19 "não passa de uma gripe, uma doença como qualquer outra".

A não aceitação de limites é uma das maneiras mais comuns de estruturar prepotência. Essa não aceitação do que ocorre, da realidade que impacta cria inúmeros oportunismos, desvarios e exacerbações. A negação de limites é atitude comum nos casos em que a vida, o comportamento, os desejos e ações são estruturados para o futuro, para depois. As metas exigem espaços de adiamento necessários para manobras que permitam realização do que se deseja. Quanto maior a impotência, a incapacidade, maior a não aceitação de limites. Essa não aceitação pode também expressar-se como submissão comprometida e então submeter-se ao que oprime, ao que limita é negação tanto da opressão quanto do limite. O processo do estar submetido cria uma familiaridade com o opressor e assim se consegue migalhas e ajudas que mais tarde possam vir a ser úteis. Da mesma forma, a recusa a submeter-se aos limites, a desconsideração dos mesmos é igualmente negação e exercício da incapacidade de vivenciar o que ocorre, o que acontece. Apenas os desejos, demandas e necessidades são reais e consideradas.

Neste momento, aglomerar-se, negar a importância do estar confinado, protegido e protegendo os outros é afirmar desejos e conveniências, passando por cima do que ocorre. O que motiva esses comportamentos é o assalto, a apropriação indevida do que está à mão e pode ser útil. O desejo imediatista esmaga multidões. Não existe realidade, apenas existe maneiras de burlar, negar, conseguir e realizar o que é desejado ou considerado necessário. A vivência descontínua do estar no mundo com os outros cria crateras, verdadeiros abismos que tudo engolem, é a não percepção da realidade e do outro. É o engolfar-se nos próprios desejos que mergulha o dito humano em seus horizontes de necessidades, contingências viscerais e biológicas, desumanizando-o. Pisar no outro, não o perceber cria solidão circundada, demarcada por ansiedade e onipotência. Este deslocamento da não aceitação do presente, gera expectativas. O futuro, o que precisa acontecer e o que não pode acontecer são ingredientes da ansiedade e frequentemente configuram o cotidiano. Sente-se que é preciso pavimentar caminhos, custe o que custar, destrua o que estiver para ser destruído, e consequentemente, nenhum limite, nenhuma regra ou realidade, seja o vírus da covid-19 ou o da AIDS, por exemplo, impedem o prazer da realização dos próprios desejos.

Não aceitar a realidade, não aceitar o confinamento decorre da não aceitação de limites. Nos processos de não aceitação de si, do outro e do mundo, o limite serve como apoio para se agarrar, ou para se submeter e depois conseguir o que se almeja. O limite, para o oportunista, é sempre algo a ser negado, pois o único limite que ele conhece são os dos próprios desejos já transformados em mola propulsora de alienação, de desumanização. Negar a pandemia, negar a Covid-19 minimizando o seu contagio é exercício de prepotência e seletividade: é o clássico “posso ficar doente, reajo, me trato e resisto, não posso fazer nada pelos que não têm condição de reação”. Lembra o início da epidemia da AIDS, quando se observou comportamentos resistentes às restrições e que se justificavam com: “se me contaminaram, posso contaminar”. A desconsideração ao outro, o sentir-se único e fora da humanidade, alienado faz com que justifique a não aceitação dos limites sanitários que foram criados para amenizar a velocidade da pandemia, a velocidade da propagação da covid-19.