On video calls, looming heads, staring eyes, a silent audience, and that millisecond delay disrupt normal human communication.

(Betsy Morris)

I am the Shade.
Through the dolent city, I flee.
Through the eternal woe, I take flight.
/…/
I am the Shade.

(Dan Brown. Inferno, 2013)

A covid-19 domina as nossas vidas e o ano de 2020.1

Entre a apreensão e o medo, buscamos na memória, na imaginação e na informação o que possa conformar-nos a este novo modo de vida: viver rodeados pelo inimigo invisível que nos pode atingir a todo o momento, se é que não atingiu já…

Como dizia o sacerdote de Édipo Rei (séc. V a. C), de Sófocles, interpelando este:

/…/ a cidade, batida pela tempestade, já não levanta a fronte acima das espumas sangrentas; morrem os frutos da terra ainda encerrados nos rebentos, adoecem as manadas de bois e não vêm a luz os germes concebidos nos ventres das mulheres. A Peste, a mais odiosa de todas as Deusas, brandiu seu facho, lançou-se sobre a cidade e devastou as moradias de Cadmo.

Nesta desolação, perdidas as referências habituais da ‘normalidade’, buscam-se outras para manter o equilíbrio. Como nas experiências em que o espaço parece mover-se (efeito de projecções psicadélicas) e nós perdemos o equilíbrio que só conseguimos recuperar se nos sentarmos e fecharmos os olhos…

O que se passa é que o cidadão está anestesiado por estímulos diferentes, de diversa origem, contrastivos… e simultâneos. Cada tipo de estímulo exige um diferente modo de recepção, o que absorve o indivíduo na vertigem dos dados e da sua ponderação. E eles chegam-nos pelos media escritos, pelos diferentes écrans omnipresentes (TV, telemóvel, computador, tablet, etc.), pela mais diversas redes sociais e pelo testemunho de familiares, amigos, colegas e conhecidos.

A fenomenologia da percepção demonstra a incapacidade de atentarmos simultaneamente a diferentes realidades/representações. Basta recordar o caso da jarra entre dois perfis: ou 1 AR: Em texto mais desenvolvido, indicarei as fontes informativas do que aqui afirmo, uma vez que o modelo textual desta intervenção não o permite.

vemos a jarra ou os perfis, nunca conseguindo ver ambos em simultâneo. E, quando as representações rivalizam multiplicadamente… a situação remete o indivíduo para uma espécie de sonambulismo e atonia que Camilo Pessanha descreve com razoável afinidade no caso da percepção opiácea:

Imagens que passais pela retina
Dos meus olhos, porque não vos fixais?

Vejamos, pois, algumas das representações que acorrem, ocorrem e se mantêm em desenvolvimento na consciência do cidadão de 2020.

Antes de mais: o que é?

A abordagem das pandemias e das epidemias, já de si de diferente abrangência, varia no escopo de observação e é policêntrica, forçando o cidadão a buscar a orientação em fontes de informação validadas, o que é tanto mais difícil de aferir quanto mais o assunto se distanciar da sua área de conhecimento…

Como, quando, onde, com quem, quem atinge, a quem convém, quem aproveita...?

Eis as interrogações na vertigem da surpresa e do perigo.

E estas perguntas da Esfinge covídica potenciam universos paralelos de discursos que vão configurando representações diversas e paralelas, indecidíveis. Como perante a Esfinge, a humanidade vai-se sucedendo em cena, em vocalizações que se retomam, contradizem e reforçam multiplicadamente: sobre a origem ‘natural’ ou ‘laboratorial’ do vírus, o seu surgimento ‘acidental’ ou ‘bélico’, a sua transmissibilidade, a sua periculosidade e ‘alvos’ (eugenista? ‘controlador’ do excesso de população e/ou da ‘sustentabilidade’ dos sistemas de saúde e de segurança social?), a sua terapêutica e prevencibilidade, a evolução (dos dados mundiais aos regionais), as diferentes estratégias nacionais de enfrentamento, a actuação (ir)responsável e consciente das instâncias competentes (da China à OMS), os seus efeitos na vida comunitária (cenários síncronos e prospectivos), as polémicas (inter)nacionais com metamórficos contornos, etc., etc..

Este breve folheio de questões que promovem o debate, a polémica e históricos argumentativos com multiplicidade de posições, cada uma engrossando as fileiras de adeptos e abrindo-se a outras mais subtilizadoras ou intermédias é espaço de (des)informação onde o cidadão deixa de confiar nas referências oficiais, que também se acusam reciprocamente de falta de fidedignidade informativa.

A propósito e sobre

Antes de mais, na história da humanidade, o destaque vai para o tema das pan/epidemias, onde a do covid-19 naturalmente se inscreve, se compara e se relativiza, desdramatizando- se: o ser humano lá lhes vai sobrevivendo… À margem do conhecimento científico, essas referências relativizam a gravidade do vírus e mostram homólogos já ultrapassados, o que favorece a desdramatização da sua realidade.

Esta é uma moldura em geometria clássica e centrada: um discurso sistematizador do conhecimento sobre o fenómeno e os seus diferentes aspectos, que os contorna e cartografa.

Como será...?

Ao lado, em geometria fractal, onde o acaso e a reversibilidade promovem a imponderabilidade, eis que a Filosofia e as Artes desenvolvem concertos contrapontísticos em multidimensionalidade: (cor)respondendo-se, cintilam pontos luminosos de uma abundante produção das diversas práticas artísticas, assim como a reflexão sobre os limites da dor, do medo e da existência. É um sfumato ao caso.

Trata-se de discursos desassossegadores, disruptivos, de fuga e/ou de insiders ficcionados elaborando pormenores ou imagens de conjunto (ficcionando ou teorizando), marcado pela imprevisibilidade. Discursos exigindo atenção plena, concentração na lógica que os sustenta, abstracção da realidade.

Os do E se…?, com toda a panóplia de especulações sobre consequências o não ocorrido: a história contra-factual…

Entre estudos, casos e fontes (das individuais às institucionais, passando por comunidades, científicas e outras), destacam-se a/s Literatura/Artes ‘da pandemia/peste’: da que se gera inovadora e compensatoriamente nesse enquadramento (p. ex., Decameron (1348-53), de Boccaccio) à que a tematiza. Neste segundo caso, de imenso caudal, brilham controversamente obras ‘antecipadoras’: The Eyes of Darkness (1981), de Dean Koontz, com o vírus Wuhan-400 (1989), o filme Contágio (2011), de Steven Soderbergh com roteiro de Scott Z. Burns, com um fictício MEV-1 criado na China com três vírus reais (o Nipah, a SARS e a gripe espanhola), inspirado n’A Próxima Peste (1995), de Laurie Garrett, o apocalíptico The Stand (1978), de Stephen King, com um vírus laboratorial da gripe que dizima 99% da população mundial que o autor se viu pressionado a declarar ser mera ficção. Infernos que Dan Brown (2013) também concebeu, revisitando Dante…

Inquietante! Tanto mais quanto todas estas antecipações/coincidências se combinam com a previsão de uma pandemia por Bill Gates numa conferência do projeto TED Talks (2015), reforçando e recordando a previsão do relatório Global Trends 2015: A Dialogue About the Future With Non government Experts do National Intelligence Council, pandemia abolindo fronteiras e mostrando a fragilidade do mundo globalizado… E tudo se reforça face à divulgação de investigação referente ao vírus em 2015 e ao anti-vírus patenteado (2017), ambos com os nomes hoje conhecidos.

E a estupefacção domina-nos quando nos lembramos que, em 18 de outubro de 2019, em Nova York, o Johns Hopkins Center for Health Security, o Fórum Económico Mundial e a Fundação Bill & Melinda Gates acolheram o Evento 201: “um exercício de pandemia de alto nível” cujas características se assemelharam tanto ao Covid 19 que os organizadores sentiram necessidade de declarar ter sido “uma pandemia fictícia de coronavírus”, “um falso romance de coronavírus” com “o surto do nCoV-2019 [a] mata[r] 65 milhões de pessoas”, não uma “previsão”. Esta coincidência fez José Goulão chamar aos organizadores “Profetas do vírus”.2

Como estamos a enfrentar a pandemia?

Na ‘era da suspeita’ que vivemos… tudo promove diálogos, aprofundamentos e polémicas. A problemática da informação: entre o excesso, a multiplicação, a diversidade e diferença (de dados, de oscilação entre números absolutos e relativos, de fonte e hora de registo, de modo de apresentação, de termos de comparação, de foco ou de perspectiva), a ocultação, a manipulação e a falta, a quantidade e a qualidade. Sempre com argumentação esgrimida na cena pública, chegando instâncias administrativas a acusar-se mutuamente (lembro a denúncia da ‘lei da rolha’ pelas autarquias). A multiplicação de estudos, sondagens e inquéritos sobre os mais diversos aspectos da nossa vida e com as mais diversas origens. As denúncias: sobre a falta de profissionais de saúde, de material de protecção individual adequado dos profissionais de saúde, de material de combate à doença, de testes, de tratamento dos doentes habituais (incluindo, atendimento em urgências, cirurgias e consultas)…

Paralelamente...?

A omnipresença do noticiário da pandemia ou com ela relacionado só é interrompida com factos extraordinários. Os que se prolongam acompanhados pelos media: o principal será o da morte de Valentina, a menina barbaramente assassinada pelo pai e pela madrasta. Os de novelismo político: as reuniões da Comissão Europeia e seus ministros das finanças, a nível internacional, e o da crise Presidente da república/ Primeiro Ministro/ Ministro das Finanças, a nível nacional. Os da factualidade rocambolesca dos líderes como Trump, Bolsonaro, Johnson, em especial, a que cada país junta o anedotário (lamentável) dos seus.

Fugazes: as aquisições de material de protecção inadequado, as aquisições de material pela China, contratos de ajuste directo em montantes elevadíssimos e não reportados nas plataformas das aquisições, o sugadouro do Novo Banco, da TAP, etc.. Alguma tipologia de burlas em tempo de pandemia, incluindo as que nos chegam pelo telemóvel e pelo e-mail, as de crédito online ou telefónico, as de MBWay…

Para trás, relegados para segundo e terceiro planos, afogados na sombra, os casos incómodos de poderosos e inconfessados interesses: o caso BPN, o caso BES ou BES/GES, já matéria de teses académicas, o caso Sócrates, ao Panamá Papers, o Montepio, etc. e, em geral, os esquemas de branqueamento de capitais, no plano financeiro; o caso Tancos; a corrupção política nacional (vistos Gold, Freeport, etc.), os escândalos financeiros com fundos comunitários; a corrupção no desporto; a corrupção na justiça (de Orlando Figueira a Rui Rangel e Luís Vaz das Neves, p. ex.) . Há já teses que abordam décadas de escândalos financeiros no país, sinal de assunto já ‘pacificado’, ‘enquadrado’, em perspectiva. E há a “missão impossível” de quantificação da fraude, com números “assustadores”. Em pano de fundo, as grandes fraudes financeiras internacionais já justificam revisões da bibliografia, tipologias, antologias, estudos anuais, como o da Deloitte Fraud Survey Portugal (2019), que conclui com a convicção geral (70%) de que o nível de fraude se vai manter e aumentar em Portugal, particularmente, devido aos gestores de topo. E Portugal desce no ranking do Índice de Percepção da Corrupção (CPI), com mega-processos a arrastarem-se até ao seu arquivamento e a justiça com custos inacessíveis ao comum cidadão, como declarado no Tribunal Europeu dos Direitos do Homem (TEDH), onde, desde 1959, Portugal perdeu 270 dos 354 processos, dos quais 143 pela morosidade. E, quando há resistência a tomar alguma medida que corrija o problema, a solução é a receita desde o séc. XIX: fazem-se comissões, estudos, etc..

Distraindo e fraternizando: os espectáculos, as reuniões e os colóquios online

No centro de tudo isto, o cidadão torna-se, progressivamente, a ser presa de um meio invisível que deveria dominar e que criou para poder dominar: o dinheiro, cada vez mais desmaterializado (desde os cartões às aplicações tipo MBWay e à criptomoeda). Com isso, é, também, refém de uma política (acção, sistema, aparelho, estado) que criou para se gerir…

E a seguir...?

Eis a atenção mobilizada para diante, para o futuro. Por um lado, pelo desconfinamento. Como, quando, se, etc.. Polémicas também.E as complementares: a questão da acessibilidade ou não de material de protecção individual suficiente para os profissionais de saúde e para a população, a existência de estruturas logísticas para o recrudescer do contágio, o confronto entre o critério da saúde e o da economia…

Por um lado, pelas consequências do fenómeno. Que mundo e que vida pós-pandemia? Depois de famílias e locais devastados, da desolação emocional, da calamidade económica…’ Por fim, pelos cenários prospectivos possíveis: o vírus ‘desaparecerá por si?’ vs. ‘o vírus permanecerá entre nós e teremos de aprender a viver com ele’, ‘só com a vacina poderemos enfrentar a situação’ vs. ‘não haverá vacina’ vs. ‘talvez venha a haver tratamento antes da vacina’, ‘havendo vacina eficaz, não há possibilidade de a massificar em tempo útil’ vs. ‘havendo vacina sem testagem eficaz em humanos pode não imunizar na percentagem desejada e causar outros problemas em cadeia”… idem relativamente à relação de forças na geopolítica mundial (China, UE, EUA…)… idem relativamente ao status de cada país entre a (in)capacidade de correspondência às necessidades económicas dos seus cidadãos e os problemas da sociedade sobrevivente … idem, ainda, relativamente aos grandes interesses económicos representados pela banca, sociedades financeiras e empresas estratégicas (com mais ou menos buracos económicos absorvendo mais ou menos recursos dos cidadãos), aos interesses partidários (que novo xadrez político-ideológico resultará da crise?)… idem no que se refere ao mundo da justiça (que casos da grande corrupção financeira, política, etc. foram arquivados, avançaram ou se concluíram e como?), que, no fundo, é responsável pelos limites da actuação das instituições e dos cidadãos (estando estes já fartos da impunidade de responsáveis pelos mais diversos e graves crimes, incluindo de sangue, e a falar em justiça popular, como tem acontecido…

Dando conta, transversalnmente, de tudo isto, eis agora nas bancas o livro Ressurgir – 40 perguntas sobre a pandemia, coordenado por Artur Mourão, Diana Ferreira, Mendo Henriques, Nuno André, com 60 intervenções de personalidades das mais diversas áreas do conhecimento entre as quais me conto.

Enfim, dominado pelas múltiplas, diversas e contraditórias representações da pandemia e dos seus medos, o cidadão fica ‘anestesiado’, esquecendo tudo o que, entretanto, vai reconfigurando o real em que se inscreve e que, quando ele despertar, estará diferente. Mas, se as Belas Adormecidas do contoário tradicional dormem sonos tranquilos, os cidadãos vivem a angústia de uma distopia e o pressentimento de outra…

Notas

1 Em texto mais desenvolvido, indicarei as fontes informativas do que aqui afirmo, uma vez que o modelo textual desta intervenção não o permite.
2 Vid. aqui.