The fascination of what's difficult
Has dried the sap out of my veins, and rent
Spontaneous joy and natural content
Out of my heart.

(W. B. Yeats)

No último filme de Carl Dreyer, Gertrud, de 1964, o realizador dinamarquês cria sua personagem mais emblemática – uma mulher que não se contentava com o amor/afeto quotidiano porque este era, e seria, sempre menos que o amor ideal, aquele aventado por Sócrates no Banquete, e plasmado nos diálogos de Platão. Gertrud, uma mulher com alma de artista, pede que no seu epitáfio escrevam: amor omnia, uma redução da frase de Virgílio, Omnia vincit amor et nos cedamus amori.

Omnia, exposição de Pedro Cabral Santo, é um dispositivo em semiose infinita, é uma meta-exposição que se refere a toda a obra do artista, ao mesmo tempo em que se constitui enquanto uma exposição diferente de todas as demais. Porque a arte, enquanto dispositivo em si mesmo, não se repete: a cada nova exposição, renova-se, recria-se, porque o dispositivo, como disse Giorgio Agamben, não é o meio nem a mensagem, constitui-se de uma rede de relações que estão para além do objeto e da sua representação. Num conjunto de ensaios magníficos, escritos de maneira fragmentada, quase aforística, A Comunidade que vem, o filósofo italiano recorre a diversos autores para defender a ideia de uma contemporaneidade singular, de um porvir em potência, como na obra de Herman Melville, uma potência que nunca se regista enquanto ato: Bartebly prefere não fazer. A negação do gesto é, na visão de Agamben, a única maneira de salvar o pensamento da sua extinção, pois no momento que ele se torna um ato, se coisifica, deixa de ser pensamento e converte-se em objeto. E é esta a aporia da arte: ser-não-sendo. Ou existir em potência, nunca objeto acabado, nunca obra fechada, nunca coisa - sempre pensamento, ideia que estabelece relações, sinapses que levam a execução de gestos.

Nesta exposição, o pensamento artístico de Cabral Santo, é condensado em objetos que, por sua vez, negam a sua objetividade ou possibilidade de objetificação: são seres híbridos. O jogo entre materiais – leve/pesado; opaco/transparente; real/virtual e entre sistemas diversos de significação – pop/renascentista; massivo/erudito; clássico/contemporâneo, traduz, de certa maneira, a palavra que nomeia esta exposição – Omnia.

Composta por 12 peças que estabelecem um diálogo entre si e com a restante obra do artista, esta exposição abarca, e traduz, o percurso já longo de Cabral Santo e permite-nos entrever, admirar, perscrutar, as obsessões que o movem - o desejo do irreparável que, nas palavras de Giogio Agamben, “é o facto de as coisas serem como são, deste ou daquele modo entregues sem remédio à sua maneira de ser”. O irreparável é o mundo com suas contradições – sagrado e profano, doloroso e prazenteiro. O mundo é o mesmo para quem sofre ou se regozija, o que muda são os seus limites, as coisas dadas são como são.

E é sobre limites que nos fala cada uma das 12 obras: começando pelo fim, The Dead of Captain America, representa a morte de um heroi, e de um modelo de vida, ao mesmo tempo que o imortaliza e conserva viva a sua memória – a morte encenada do Capitão América traz-nos de volta a sua existência mesma e questiona, através do dispositivo, a permanência da ideologia que se traveste de norma. Red Flag, Red Eye/Blue Eye, 1999 Gulliver, Turn left, Turn left e Oxido (Play europe) fazem parte do mesmo dispositivo discursivo que alude ao universo político/partidário do artista. Podemos ler qualquer obra por si mesma, mas ela só existe em relação a quem, em dado momento, fê-la surgir, transformando o pensamento em gesto e a alusão em objeto.

O universo do artista é da ordem do irreparável, existe além dele mesmo, e é bastante vasto. Dele surgem obras como Yeats, The Space Invader, Human, just Human, Jet out of the Sky (Sea of madness) e Su Pressione que conjugam erudição com cultura de massa, num jogo de suportes e matérias dissonantes, de palavras, de sobreposições e de citações, elementos que reforçam a contemporaneidade de um trabalho artístico que não nega o seu tempo – o hoje, mas não descura a sua história, que é o que lhe pode revestir de sentido. Neste todo que compõe a exposição, há espaço para obras mais referentes, como Água de alfarroba e mais delirantemente líricas, como O Mergulho. Há espaço para o espaço à volta de cada trabalho, que como o silêncio, é também significante. Um espaço vazio, numa exposição de Pedro Cabral Santo, é um vir-a-ser que liga os objetos entre si e que se conjugam para (com)formar um todo.

Omnia é um todo/tudo inalcançável, como o amor impossível de Gertrud – que só existe em potência e, ao se tornar gesto, perde o poder de permanecer, pois só existe onde não está.