Em muitas de suas entrevistas, Marina Abramović, artista septuagenária nascida na antiga Iuguslávia, afirma que as coisas que ela faz nas suas performances desde a década de 70 são muitas daquelas que as pessoas não gostam e das quais elas têm medo. Na sua opinião, e eu devo concordar, ninguém muda sempre fazendo as coisas que gosta. A transformação está em fazer o que não se gosta e o que se tem medo. Para Marina, se ela é capaz de fazer e se libertar do medo e da dor, o público pode fazer o mesmo. E é nessa direção que podemos compreender uma espécie de evolução da arte da performance que ela pratica. Da performance que testa o limite do seu corpo ela passa ao corpo alheio.

Até experimentar o Método Marina Abramović na grandiosa exposição retrospectiva da carreira de Marina de título Terra Comunal no Sesc Pompeia, SP em 2015, eu não tinha ouvido falar muita coisa sobre arte performática. O que me atraiu foi que o Método exigia apenas o tempo livre do público e uma promessa de interação consigo mesmo. Achei a proposta interessante e lá fui eu numa tarde quente saber o que Marina tinha para me oferecer.

O Método exige que você se dispa de todos os seus eletrônicos e passe por uma sequência de quatro fases precedidas por um aquecimento que é feito coletivamente seguindo um vídeo. Após isso, os operários Abramović separam o público nas quatro fases do Método, que nada mais são do que uma mini prova de resistência nas quatro formas de ser num espaço: em pé, sentado, deitado e em marcha lentíssima. Todos recebem protetores auriculares do tipo fone e ficam isolados acusticamente.

Para mim a experiência foi transformadora e ao mesmo tempo intrigante: como ações tão simples como andar em ritmo lento de um lado de um galpão ao outro, deitar, sentar e ficar de pé em uma estrutura com cristais podem fazer a gente se sentir tão diferente? A resposta para essa questão eu só encontrei recentemente ao ler a biografia Quando Marina Abramović morrer: uma biografia (2015) de James Wescott e ao assistir o documentário Espaço Além: Marina Abramović e o Brasil (2016) do diretor Marco Del Fiol.

A biografia é certamente muito clara sobre as verdadeiras razões de uma arte performática tão dualista em diversos pontos e que perpassam a obra da artista: a vida e a morte. A vida da artista, bem como a de todos nós, é um pêndulo entre esses dois eixos inescapáveis. O próprio gênero do texto reflete esses dois conceitos e podemos nota-los inclusive a partir da disposição gráfica do livro. A capa contém as instruções de como se deve proceder depois da morte da artista em letras vermelhas em um fundo branco perolado. E a questão mais impressionante de que me dei conta em algum ponto da leitura apenas: no corte da frente do livro estão impressas as palavras vida e morte, mas elas se embaralham de modo que só se percebe e se consegue lê-las ao folhear as páginas rapidamente. Quando o leitor descobre isso é como se ele se dessa conta fisicamente que vida e morte são interdependentes e que, ao se avançar na vida, como se avança na leitura, a morte chega mais perto. É incrível, como todas as performances de Marina!

Como toda biografia, passamos pela vida de Marina e gradualmente nos damos conta que sua passagem da pintura para a performance era inevitável, já que ela é movida à energia do movimento, muito embora grande parte de suas performances debatam justamente a tensão entre o movimento e a inércia, como em uma de suas mais recentes e inquietantes performances A artista está presente de 2012 que ocorreu no MoMa. Nessa performance Marina ficava inerte sentada de frente para qualquer pessoa do público por quanto tempo essa pessoa quisesse encarar Marina todos os dias por 3 meses. Outro exemplo marcante desse tipo de tensão é Rest Energy de 1980. Nela Marina e seu ex-parceiro amoroso e de trabalho, Ulay, seguram um arco e flecha em tensão com a flecha apontada para o coração de Marina.

Diversas performances desafiam o limite do medo, da dor, da paciência e da sanidade. Com o passar do tempo e depois da última performance ao lado de Ulay, The Lovers – The Great Wall Walk (1988), ao caminhar na Muralha da China por meses, nota-se que Marina precisa se reinventar quanto mulher e sobretudo quanto artista. Entramos numa espécie de segundo momento de criação, na qual ela começa por uma viagem ao Brasil em busca das energias dos minerais e cristais. Sua visita à Serra Pelada no final da década de 80 trouxe uma marca importante nas performances, pois desde então muitas interações da artista e do público se fazem intermediadas por cristais, como pude experimentar no Método Abramović em 2015.

Bem tardiamente na sua carreira a Marina mulher desperta e com ele o seu gosto pelo mundo fashion e vaidade. Ela se aproxima de grandes estilistas e ganha capas de revistas de moda estando na casa dos 60. Para Marina, os artistas de sua geração sempre negaram a beleza, a moda e o acúmulo de capital, pois tais coisas poderiam obliterar a qualidade da obra. Marina, entretanto, se libertou de seu grupo para se tornar uma das mulheres mais influentes no mundo artístico e ganhando muito dinheiro também.

Marina, então, depois de romper com Ulay, busca inspiração artística e uma cura para a alma em diversos rituais em vários lugares do mundo. Entretanto, a sua viagem ao Brasil, que resultou no documentário acima citado, compilou as experiências mais extremas de espiritualidade da artista. Sua jornada passou pelas curas do médium João de Deus, por lugares sagrados na Chapada dos Veadeiros, pelos rituais do Vale do Amanhecer, pelas tradições de raizeiros e benzedeiras, pelo sincretismo baiano, pela cerimônia da Ayahuasca, pela sauna sagrada, pelos processos xamânicos e pela terapia com cristais. Além de ser um documentário extremamente enriquecedor para se conhecer esses rituais sem o viés de nenhum deles, ele faz com que possamos viver essa espécie de performance junto com a artista. Sobretudo, vemos que o processo de cura e inspiração buscado por Marina resultará justamente numa espécie de saída de cena da artista para que o público seja de fato a obra, como acontece no seu Método. Em determinado trecho do documentário, Marina coloca que a performance e o ritual de espiritualidade têm várias coisas em comum como o aqui e o agora que a divindade se mistura com o mortal de um lado, e a artista se mistura com o público de outro. É como se o Método fosse o ritual de cura do público e a artista não mais faz com que o seu corpo transmita a mensagem de liberdade do medo e da dor, mas transpõe ao público a oportunidade de experimentar por si mesmos na própria pele de fato.

Por mais que muitos acreditem que a arte da performance é uma balela e que Marina não seja muitas vezes levada a sério, eu diria que não é todo mundo que está preparado para encarar a obra profundamente marcante e desafiadora de Marina Abramović. Como ela disse em uma entrevista à BBC, você precisa estar vulnerável para poder experimentar a performance. Quem se permite estar vulnerável nos dias de hoje, quando tudo o que parecemos ter é um teto de vidro para proteger nas redes sociais?

Em um momento tão incerto, é válido olhar para a vida e obra de artistas como Marina Abramović e nos inspirarmos sobre como questionar os nossos limites físicos e psíquicos e buscarmos por nossas curas e paz de espírito. Temos muito o que aprender com as performances de Marina, basta que fiquemos vulneráveis em suas mãos.