"Música para ouvir” é uma expressão do óbvio. A letra da canção do poeta e músico Arnaldo Antunes de mesmo título do álbum Um Som, de 1998, elenca alguma frase sobre música que você já proferiu: “música para compor ambiente”, “música para ninar nenê”, “música para dançar na pista", “música para ganhar dinheiro”. Em meio a tantas “verdades”, o refrão, porém, ressoa absoluto: música para ouvir. Mas no fundo o poeta critica uma obviedade reducionista que achata e compartimenta toda a experiência que a música pode proporcionar.

A música, em sua essência, é um ato que se completa em diversos sentidos e não apenas a audição. Talvez, a partir do momento que músico, sua composição e ouvinte se separaram por conta da difusão musical no espaço, o momento multissensorial que a música permitia em seus primórdios tenha desaparecido. Tenho em mente, sobretudo, a performance da poesia arcaica grega, que é o que conheço melhor.

A poesia arcaica não era apenas um texto poético que tocava alguns pontos de uma vida comum: amor, festa, morte, deuses. Ela era performática ao ser acompanhada de música e provavelmente poderia servir de estímulo para dança em banquetes ou simpósios. A unidade que a música, poesia e performance tinham proporcionava, em um mesmo espaço e tempo, todos os elementos sensoriais: o músico executando sua própria música e poesia (ou a de outros) maneja seus instrumentos e expõe sentimentos; os convivas dos banquetes veem e ouvem a execução daquela peça; as hetairas e talvez os próprios convivas dançam ao som da performance; comem e bebem e se deixam levar pelo êxtase musical.

A música, portanto, não era e ainda não é só para ouvir. Hoje ela é portátil e reproduzível infinitas vezes sem que haja a necessidade de todo aquele espaço convivial para que ela aconteça. Muito menos a apreciação da poesia. Entretanto, os shows de música ainda são momentos de performance que mantém muitas semelhanças com o banquete grego. É claro que isso acontece em configuração e escala totalmente diferentes. Propositalmente, talvez, esses espetáculos se valham de recursos tecnológicos para manter os elementos performáticos que faziam daquela execução primordial grega um momento tão único.

A menos que você não seja um reles mortal que não pode se dar ao luxo de pagar uma apresentação exclusiva de um artista reconhecido em sua casa, as performances dos grandes músicos e suas bandas são em espaços públicos e em muito maior escala. Ou seja, músico, sua composição e o ouvinte voltam a estar presentes para que a performance se realize. Comida e bebida não mais fornecidos pelo anfitrião do banquete estão disponíveis. Dançarinos muitas vezes estão no palco e agitam a plateia que, mimeticamente, executam seus mesmos passos. Havia bebedeira excessiva e sexo no banquete, o que certamente é o follow-up para muitos.

De maneira geral, qualquer artista é capaz de reunir esses elementos e deflagrar um espetáculo. Porém, há artistas que vão além e refinam a forma como eles tocam os sentidos das plateias e talvez seja esse o grande diferencial (excluindo o poder do marketing, é claro!) que faz com que tais artistas arrastem multidões a estádios mundo afora. Diante disso, dou três exemplos que pude vivenciar recentemente.

U2 é mestre em reinventar a experiência musical e não fez diferente na sua última passagem pelo Brasil. Mais uma vez eles surpreenderam o público com um telão do tamanho do palco, cuja projeção era tão límpida e articulada com o setlist que parecia que nós, na pista, estávamos dentro daquele cenário, ora montanhoso, ora árido daquele telão. Ou seja, apesar de longe e desconfortável, o espectador é levado a um estado de pertencimento proporcionado não apenas por estar naquele espaço e pela boa música, mas também por conta da potencialização dos elementos visuais sincrônicos, por isso a sensação de plenitude ao final da performance.

A performance multissensorial atingiu, no meu ponto de vista, outro patamar com o show do Coldplay este mês em São Paulo. Além do apelo visual multicolorido característico das projeções em telões mais singelos da banda e jogos de luzes, a banda aguça o tato de seus espectadores com chuva de papel picado de vários formatos (condizentes com elementos das letras das músicas) e com pulseiras de led controladas remotamente e também sincronizadas com o show. O pertencer ao show é muito intenso e o espectador também vai para casa com a sensação real de ter sido parte do todo performático carregando ainda sua memorabilia.

Por fim, o violinista alemão David Garrett no seu show também este mês em São Paulo soube aguçar a percepção de sua plateia com seu virtuosismo e pelo seu transitar pela plateia e por diversos gêneros musicais com seu violino. Como as músicas não possuem acompanhamento musical, o espectador tem seus ouvidos estimulados a reconhecer hits somente ao som das impecáveis notas do violinista e da irretocável banda. Ao iniciar seu show entrando não pelo palco, mas tocando em meio à plateia – o que sempre alvoroça as fãs – David não só se coloca no mesmo nível do público, o que é mais um sinal de sua humildade, mas também coloca o violino ao alcance de todos. Sendo o violino o mais clássico instrumento da música clássica, muitas vezes distante desse público que ele atingiu, o artista alemão não só mostra que o instrumento está no mesmo nível do público fisicamente, mas, ao fazer seus crossovers, ele realmente populariza o instrumento e ensina a sua plateia que a música quando é boa não tem fronteiras instrumentais.

Para mim, esses três últimos shows que pude assistir em 2017 me mostraram que os artistas aclamados de hoje, diante de um mundo com acesso a tantos estímulos e conteúdos audiovisuais, ainda arrastam seus fãs a teatros, casas de show e estádios, apesar de alto custo, provavelmente por reunir todos aqueles elementos do imaginário simposial grego, potencializando alguns de nossos sentidos e nos fazendo sentir que somos parte do show.

Popularizada por uma canção de uma dupla sertaneja, o verso "Todo artista tem de ir aonde o povo está” da música "Nos bailes da vida" de Milton Nascimento, é realmente a síntese performática da música hoje acrescida de recursos diversos no intuito comercial de fidelizar o cliente, mas, sobretudo, na tentativa de resgate da experiência intimista e sensorial do simpósio antigo.