A doença, o sofrimento e a morte entram num bar é um livro sobre humor de Ricardo Araújo Pereira (RAP), recentemente editado e publicado pela Tinta-da-China. Numa entrevista recente, RAP abordou-o humildemente da seguinte forma: “(..) uma espécie de colecção de exemplos que me foram ocorrendo quando eu ia escrevendo.”. Mais à frente, na mesma entrevista, detalhou um pouco mais: “(…) o facto do professor Barros Baptista, que dá aulas na Universidade Nova, me ter convidado há uns quatro anos para dar aulas de escrita humorística numa pós-graduação, que se chama Arte da Escrita. Essas aulas, até lhes chamo mais conversas ou sessões com as pessoas que têm a paciência de me ir aturar, obrigaram-me a fazer um esforço de sistematização de algumas coisas que se podem dizer sobre isto”.

Na realidade, a palavra “sistematização” parece ser a palavra-chave quando se pensa sobre este interessante livro. Parece claro que o autor quis abordar duas questões fundamentais relativas ao humor e ao seu papel na nossa vida. A primeira diz respeito à razão para a existência do humor. Segundo RAP, o humor fornece uma espécie de anestesia para o pensamento sobre a morte. O autor apresentou muitos exemplos para suportar essa ideia (um deles é maravilhoso, envolvendo a morte de Buster Keaton).

A segunda diz respeito aos “ingredientes secretos” que fazem “bons pratos humorísticos”. É neste ponto que surge a dita sistematização. Por mais estranho que possa parecer ao próprio autor, o livro de RAP desenrola-se como se de um livro de geometria se tratasse. Nos próximos parágrafos, procuraremos esmiuçar (palavra de que RAP gosta) esta frase, quiçá provocadora.

Comecemos por abordar um conceito lateral, caro à matemática: a “simetria”. Esta palavra tem a sua origem no grego συμμετρία (σύν “com” e μετρία “medida”). Na sua génese, a palavra aponta para algo mensurável. Um objecto com muita simetria tem alguma lógica suscetível de ser medida e compreendida. A simetria sempre apareceu fortemente relacionada com a noção de reflexão e imagens espelhadas. Modernamente, o conceito matemático de simetria é tratado de uma forma mais abrangente. Há uma invariância, uma parte que se obtém de outra por simetria. Há “lógicas” que trazem o “conforto da compreensão”. É impossível ficar indiferente a imagens como a fotografia de Derrald Farnsworth (capa) ou as da Duomo di Milano (vide infra).

Essas “lógicas” têm sido categorizadas matematicamente. Vejam-se exemplos relacionados com a calçada portuguesa aqui e aqui.

O sentimento humano face à simetria fundamenta-se na identificação de padrões. Essa identificação pode trazer uma sensação de harmonia e equilíbrio. Como animais racionais que somos, se compreendemos uma coisa então sentimo-nos bem. A compreensão é uma condição necessária para esse “bom sentimento”.

O que é notável no livro de RAP é facto de se tratar de uma categorização do mesmo tipo. É evidente que o autor acredita num texto bem escrito, numa estrutura cuidada em prol do humor. De certa maneira, o autor acredita em algo que já conhecemos da análise da simetria: uma boa compreensão é uma condição necessária para que uma pessoa se ria ou para que uma pessoa ache graça a alguma coisa. Estamos a falar de algo profundamente matemático. É muito interessante constatar que pessoas, mesmo considerando-se avessas à matemática, fazem categorizações de tipo matemático, muitas vezes de forma inconsciente.

No Público podemos ler algumas observações de Porchat e de RAP:

“Os textos são o que de mais importante temos no Porta, tratamos o texto quase de forma matemática e um dos nossos segredos é que deitamos muita coisa fora, não há um sentimento de posse nos argumentos”, conta Porchat, para quem “a perfeição no humor é fazer rir e pensar.”

Ricardo Araújo Pereira: “Fazer rir ou pensar não é mutuamente exclusivo. Faço as duas coisas ao mesmo tempo, até para saber do que me rio.”.

Essa é a chave: “saber do que me rio”. Há certos padrões no humor. E esses traços de estrutura são surpreendentemente parecidos com traços que já conhecemos no estudo das simetrias. Para melhor se perceber do que falamos, ilustremos com a categorização feita no livro de RAP.

Um dos capítulos é o “Opor uma coisa a outra”. Relaciona-se com o que os matemáticos chamam “reflexão”, ainda que de uma forma negativa, uma espécie de “anti-reflexão”. É interessante constatar que o desenho da ilustradora Vera Tavares é um típico desenho que exibe uma simetria de reflexão. Nas palavras de RAP, uma forma de opor uma coisa a outra é colocar lado a lado personagens como Dom Quixote e Sancho Pança, o Sr. Pickwick e Sam Weller, Abbott e Costello, Dean Martin e Jerry Lewis, etc. É claro que uma é tanto mais cómica quanto mais séria for a primeira.

A oposição pode ser entre o que uma personagem deseja e o que realmente sucede. No filme Clockwise (1986) de Christopher Morahan, John Cleese interpreta um personagem muito british, rigoroso e obsessivo com horários. Alguém seríssimo e eloquente. No outro lado do espelho, está o facto de tudo lhe correr mal, tornando-se impossível ser fiel ao seu estilo e obsessão. Nesta oposição, surge o humor. Nós percebemos o padrão de pateticidade e achamos graça (ainda bem que a coisa não sucede connosco!). Naturalmente que estas “reflexões” e “anti-reflexões” são omnipresentes na arte, na ciência, etc. Um exemplo muito bonito é o Décalcomanie (vide infra), obra de 1966, do pintor belga René Magritte.

Outro capítulo do livro é o “Virar uma coisa de pernas para o ar”. Relaciona-se com o que os matemáticos chamam “meia-volta”. Mais uma vez, o desenho da ilustradora traduz uma meia-volta. Um dos parágrafos do livro diz tudo: “Virar uma coisa de pernas para o ar é, em geral, exercer sobre ela uma forma de violência. Trata-se, aliás, de uma operação potencialmente destruidora. No âmbito da comédia, contudo, é frequentemente um acto criador. A ideia de que o mundo, submetido à prova radical de ser virado do avesso, continua a fazer sentido, pode ser tranquilizadora; se fizer mais sentido do que a forma original, isso pode ser inquietante; significa que o mundo já estava às avessas antes de ser virado do avesso.”.

Repare-se como o próprio RAP utiliza uma linguagem matemática: “É possível encontrar uma espécie de simetria reflexiva impecável numa rábula dos Monty Python chamada Bicycle Repair Man (anos 70).”. Sim! Uma meia-volta pode ser considerada uma reflexão em torno de um ponto. E, é claro, a grande qualidade da rábula dispensa comentários.

Um exemplo artístico assinalável, utilizando várias interpretações escondidas, é o Personajes y Perro delante del Sol, obra de 1949, do pintor espanhol Joan Miró. Muitas pessoas observam uma pessoa de pernas para o ar. No entanto, a cabeça mais pequena pode ser de uma pessoa e a maior a de um cão. Serão guarda-chuvas aquilo que se vê lá atrás? Enfim, veja‑se o que se quiser: o desenho é lindo.

O capítulo “Mudar uma coisa de sítio” relaciona-se com o conceito geométrico de translação. Novamente, a ilustração do livro mostra uma translação. RAP explica que a ideia consiste em mudar uma peça de lugar, mantendo-a igual noutro contexto. Normalmente, o novo contexto em que esta é integrada tem algum tipo de parentesco com a peça que é transladada. É apresentado um sketch de Seinfeld, The Barber (1993), em que uma situação envolvendo barbeiros faz lembrar as típicas situações em que dois amantes procuram fugir ao cônjuge traído. É esse reconhecimento da situação, mas com um pano de fundo diferente, que nos faz rir. A estrutura do sketch é impecável.

A noção de translação também pode ser associada ao capítulo “Repetir uma coisa”. Para não variar, a imagem exposta no livro ilustra isso mesmo, uma translação. RAP utiliza um exemplo de Larry David em que o tema humorístico é a repetição de um bizarro motivo, “respeitar a madeira” (2009). Talvez por modéstia, o autor optou por não utilizar exemplos seus, mas o Papel (2003) dos Gato Fedorento ilustra na perfeição o tema da repetição, fazendo com que achemos graça aos dramáticos momentos que podemos ter num balcão de uma repartição. Naturalmente, a repetição pode ser utilizada ao serviço de uma ideia artística. Pense-se, por exemplo, no Marilyn Diptych (vide infra), obra de 1962, do artista norte-americano Andy Warhol.

“Imitar uma coisa” pode ser associado a uma rotação de 360, fazendo com que uma coisa fique na mesma após uma volta completa. Ao contrário do que se descreveu em relação ao capítulo “Mudar uma coisa de sítio”, não se trata de mudar uma coisa de lugar, para que fique com um pano de fundo diferente. Trata-se realmente de mudar o pano de fundo para que este imite ou simule uma situação conhecida de todos.

No seu livro, RAP utiliza como exemplo um episódio de Seinfeld, “The Boyfriend”, (1992) em que os “célebres” Kramer, Newman e Jerry seguem um guião que imita uma cena de JFK (1991) de Oliver Stone. O que os actores de Seinfeld fazem é imitar o que Kevin Costner faz em JFK, mas numa situação envolvendo um jogo de basebol e uma cuspidela. A imitação da “Teoria da Bala Mágica” consiste numa “Teoria da Escarreta Mágica”. Naturalmente, quem conheça a referência original, acha graça à imitação. Um exemplo artístico é o El sacramento de la Última Cena, obra de 1955, do pintor espanhol Salvador Dali. Da mesma forma que a “Teoria da Escarreta Mágica” faz referência à “Teoria da Bala Mágica”, esta peça de Dali faz referência à famosíssima obra de Leonardo da Vinci, mas com uma estética diferente e elementos de modernidade.

O capítulo “Aumentar uma coisa” aborda o conceito geométrico de homotetia. E, mais uma vez, o desenho de Vera Tavares exemplifica uma homotetia. Matematicamente falando, uma homotetia pode ser uma redução, uma ampliação, ou deixar o objecto na mesma. RAP optou por colocar a tónica na ampliação, falando, por exemplo, numa clássica cena do Meaning of Life (1983) dos Monty Python. Trata-se de uma cena passada em casa de um casal católico que respeita a doutrina sobre a contracepção. E tem dezenas de filhos. Acha-se graça ao exagero. É claro que a redução também pode ser um ingrediente humorístico. Mas, tendo em conta que tanto uma redução como uma ampliação podem ser pensadas como sendo exageros, não são mais do que duas faces da mesma moeda humorística. Se há coisa presente na arte é o exagero, possuidor de uma força fantástica. Basta pensar no sapato Marylin (vide infra), obra de 2009, da artista portuguesa Joana Vasconcelos.

O que é apaixonante em tudo isto é o facto de se observar que tanto na arte, como na escrita, como na matemática, algumas “peças” que estão na base dos padrões que identificamos são essencialmente as mesmas. De alguma maneira, os aspectos estruturais que nos fazem rir, que nos fazem ter sentimentos artísticos, que permitem sistematizações matemáticas têm alguma constância e omnipresença. O matemático britânico Keith Devlin, no seu livro The Language of Mathematics (1998), escreve algo que parece ser muito certeiro: Mathematics makes the invisible visible. A abordagem de RAP vai muito nesse sentido, mostrar a estrutura oculta do humor, torná-la visível com sistematização e exemplos. Como Porchat dizia, “tratamos o texto quase de forma matemática”. Este livro ilustra muito bem essa ideia.