Dachau é uma pequena cidade alemã de pouco mais de 45.000 habitantes. De trem desde a grande vizinha Munique são em torno de vinte minutos. As casinhas, as pracinhas, as árvores, a calma, tudo tem o ‘jeitinho’ da Bavária.

A pacata Dachau sedeou o primeiro campo de concentração implementado no país antes mesmo do início da segunda guerra mundial. Na saída da estação de trem já está o ponto do ônibus que leva diretamente ao local de interesse principal da cidade. No caminho, um calafrio: será que os prisioneiros passavam por aqui também? Viam eles o mesmo riacho que eu estou vendo agora? Para quantas pessoas este foi o último trajeto? Que pensavam? De onde vinham? Como eram? E de repente somos tragados por um redemoinho de pensamentos terríveis permeados pelo alívio desalentador de saber que aquilo tudo que aconteceu não é mais a nossa realidade, que no final daquele trajeto não estarão os nossos algozes. Sobreviveremos.

Estar num campo de concentração é como estar no lugar errado. Aquela sensação de errar o caminho, entrar na rua errada, na sala errada, na casa errada. O primeiro impulso é querer sair, retroceder e se arrepender por ter ido. Talvez isso aconteça porque lugares como Dachau não foram feitos para humanos. Ou melhor, foram feitos para desumanizar. Lugares criados para que toda a humanidade que houver se esvaia silenciosamente e se mescle com a névoa, que evapore e desapareça sem deixar rastro.

Desde 1965 o local é mantido aberto como um memorial. Devemos dar a mão à palmatoria a um país que tem a coragem e o valor de expor, para quem quiser ver, uma ferida aberta, uma fratura exposta dessas, com tanta honestidade, sem escusas, sem tentar amenizar. Deve ser muito dolorido. Eles obviamente não estão fazendo isso pelo apelo turístico - não há nenhum porque simplesmente não deve haver. Não há nada de leviano na conservação de Dachau e na sua abertura ao público.

Os 34 barracões com capacidade máxima para seis mil prisioneiros, mas que chegaram a abrigar mais de trinta mil simultaneamente já perto do final da guerra, não existem mais, apenas o seu desenho no chão. As valas ao redor, aonde fugitivos eram alvejados tentando fugir, de repente parecem obstáculos tão precários sem uma arma apontada para a nossa cabeça. As câmaras de gás existem, mas nunca foram utilizadas como tal. As fornalhas, que se encontram distribuídas em dois lugares diferentes (a “velha” e a “nova”), sim: queimavam os corpos dos que morriam tentando escapar, dos que eram enforcados ali na salinha ao lado, dos que morriam de fome, de frio, de tudo.

Ao lado da fornalha nova, há um pequeno bosque onde pouca gente entra. Alguns poucos passos bosque adentro e encontramos um retângulo de terra preta – ali é onde as cinzas das vítimas eram jogadas, indica uma placa. Atrás tem um muro e à esquerda do retângulo preto no chão uma concavidade repleta das folhas que caem. Leio a placa, em inglês diz “Blood ditch”. Passo alguns segundos sem entender, e de repente perco o fôlego, o ar, o chão. A ideia de um homem cavando aquela vala no chão conscientemente para que o sangue de outros seres humanos fuzilados no muro atrás dela escorresse sem empapar a terra não foi fácil de digerir, e ainda não é.

Felizmente, pelo bem da decência e do respeito a tudo que foi vivido naquele espaço com aquelas pessoas, nenhum esforço é feito para reconstruir ou reencenar o que já foi. Não é necessário e só banalizaria um dos capítulos mais traumáticos da história do século XX. Seria um grande desserviço ao propósito da sua existência como memorial, porque realmente tudo isso já está ali, à mostra, em carne viva. Só não vê quem é torpe demais, bobo demais, alienado demais.

É nosso dever como visitantes e como seres humanos entender que Dachau não está disponível a nós apenas como um mea culpa alemão perante eles mesmos e o resto do mundo, como um jeito de dizer “Erramos. Erramos feio demais. Desculpem”. Nem podemos adotar aquele discurso patético infantilizador dos filmes hollywoodianos sobre o holocausto. Não, nós devemos a essas vítimas (tão inocentes como qualquer um de nós), aos alemães (que expõem a sua verdade inconveniente) e a nós mesmos muito mais que isso.

Um lugar como Dachau coloca a nossa humanidade, a nossa época, os nossos conflitos contemporâneos diante do espelho. Os campos de concentração são cicatrizes nossas, independentemente da nacionalidade. São parte de todos nós, de uma história compartilhada por todos os seres humanos, em qualquer continente. Eles estão lá na Alemanha, mas são um lembrete implacável de que a natureza humana é capaz de gerar sociedades onde a justiça é confundida com sadismo, e que toleramos que se pratiquem as maiores atrocidades. De que podemos ser extremamente cruéis, injustos, irracionais. De que às vezes nem parecemos mais humanos.

A pergunta é, diante deste espelho posto diante de nós, o que vemos? Será que o mundo que estamos construindo desde o pós-guerra é de fato menos cruel? Há menos carnificina? O que mudou? Somos mais justos? E à raiz de todos estes questionamentos, jaz o mais importante de todos: será que a tolerância é uma realidade hoje? Se tem uma coisa que fica extremamente clara diante dos olhos de qualquer um ali é que a intolerância (seja ela étnica, religiosa, de gênero, de classe, do que for) não cabe mais no mundo. Não depois de termos passado por tudo aquilo há menos de um século. Não depois de ver o que deve ter sido, sem filme bobo, sem dramalhão, sem pipoca. Só a realidade e a névoa.

Ir até um campo de concentração e não trazer esses questionamentos à tona, não experimentar essa dimensão de contemporaneidade dos fatos é perder a viagem. Pra que ir, então? Melhor visitar a Euro Disney, sinceramente. De qualquer forma, a experiência está lá para ser vivida por quem quiser. Gratuita, silenciosa, dolorosa. Agora, se for, por favor, abstenha-se de levar o pau-de-selfie.