O cinema, pródigo criador de imagens, serviu em muitos momentos para suprir, de alguma maneira, ausências. Isto não é um cachimbo. Mas sua imagem pode trazer a boca um certo gosto conhecido, ao olfato um cheiro distante. Como as famosas bolachas de Madeleine que habitaram o imaginário (e os sentidos proustianos), uma imagem (real ou virtual) serve como ponto de partida para um encontro e/ou reencontro com algo que já não está, que nos falta, que foi nosso ou nunca nos pertenceu. Bazin, em seu já mais que célebre texto sobre a Ontologia da Imagem Fotográfica, requeria o carácter de verdade às imagens, realistas em sua origem, cuja função primordial era “salvar o ser pela aparência”[1] – mesmo que discordemos de sua visão do cinema temos que nos render a esta evidencia: “Não se acredita mais na identidade ontológica de modelo e retrato, porém se admite que este nos ajuda a recordar aquele e, portanto, a salvá-lo de uma segunda morte espiritual.” [2] Assim temos que a imagem surge, fundamentalmente, na arte, para salvar a todos da morte certa do esquecimento. Portanto o cinema funciona como o medium perfeito para traçar trajetórias de lembranças, como um álbum de recordações, e mais ainda, para mostrar, a sua maneira, como a nossa relação com o mundo é construída de fragmentos que vão sendo justapostos na tentativa de recriar algo que agora nos falta (ou que sempre nos faltou). Por isso alguns realizadores, em vários momentos de suas cinematografias, traduzem essa maneira especial de estarmos num mundo que não existe por si mesmo, ele é apenas o resultado da nossa invenção. Às vezes a necessidade de reinventarmos o espaço que vivemos torna-se mais premente, como por exemplo, quando estamos longe, deslocados, desterritorializados. Quando somos “turistas acidentais” levados, por vários motivos, a sair daquilo que chamamos lar e chegarmos a um outro lugar que poderá e/ou deverá tornar-se nossa nova casa. Ao contrário dos turistas do costume que viajam em busca da alteridade, esses buscam o mesmo no outro – pedaços reconhecíveis de uma história que ficou para trás.

“Moro no Menino de Deus, do qual Porto Alegre é apenas o que há em volta”. O escritor Caio Fernando Abreu, que escolheu o autoexílio dentro do próprio país, fala da sua cidade, que não é o todo que está em volta, mas seu cantinho, seu bairro, seu microcosmo. E assim resume a nossa relação com a cidade – ela é metonímica. Criamos a nossa própria cartografia, que se compõe de fragmentos que montamos através do traçado do nosso desejo. Saio do bairro se meu desejo está além, mas minha casa, minha cidade é bem mais pequena e circunscrita não só geográfica mas também emocionalmente. Há em todos nós, em maior ou menor grau, uma relação telúrica com o lugar que nos dizem ser o nosso, pátria, terra, casa. Mas somos conduzidos pelo desejo a errar por outras terras, o que nos faz sentir solitários, ou como os personagens de Wenders, eternos errantes. E é por Wenders que quero começar a falar desses turistas acidentais: que deixaram sua cidade natal e partiram. Vou então percorrer três cidades, vistas por 3 cineastas de origens diversas, cujos filmes só podem ser relacionados por mostrarem aqueles que vivem à margem, de uma maneira muito especial, no caso de Wenders, mas que estão “fora de sítio”, deslocados. O cinema, que não pode dizer o indizível, mostra. Revela na sua montagem, na sua essência de fragmentos que são recompostos, a dor que não pode ser sublimada, mas que habita os habitantes, muitas vezes invisíveis dessas cidades, Berlim, Paris e Lisboa, metrópoles que acolhem, mesmo sem querer, sonhos e pessoas que correm atrás deles.

As cidades, com suas particularidades e idiossincrasias, possuem em comum uma voracidade que a tudo devora, uma velocidade que obriga aos que nela vivem, a capacidade de síntese, pois é preciso reconstrui-la quotidianamente a partir de pedaços esparsos, de vazios. A modernidade trouxe consigo um novo conceito de espaço urbano, que aparece, por exemplo, nos ensaios de Baudelaire e de Benjamin. E trouxe também um novo modelo de visão: subjetiva, corpórea, direcionada. Para montar o puzzle que é o espaço urbano, caminhamos orientados por peças fundamentais que destacamos de todo o resto. E todo o resto fica à margem. E é assim que funciona o cinema – concentra o nosso olhar naquilo que realmente interessa à diegese. A nossa visão do mundo é subjetiva e composta de flashbacks: vemos o que nos prende a atenção e aquilo que nos chama a atenção relaciona-se com algo que já vi (vivi). Portanto, a cidade é construída através da montagem que faço com pedaços dela mesma e com outros tantos que já trago dentro de mim. Vivemos numa cidade, que é nossa, onde conhecemos os que passam e cada canto parece ser um velho amigo, só que por alguma razão, seja ela qual for, passamos a errância e acabamos por parar em outras cidades que outrora eram apenas um sonho, um desejo que se torna real deixando assim de ser desejo. E aquela cidade, lá no fundo de nós, que ficou para trás, apodera-se deste novo espaço, e cresce, adquirindo a aura da distância, como as histórias do marinheiro de Benjamin – ela é agora o que já não tenho.

O cinema que mostra os “turistas acidentais” revela o desejo do realizador de desvelar a visão dos que saíram de casa e ainda não sabem bem se aquele lugar que os acolhe será seu novo lar. Assim, Wenders, que é um errante, perde-se na cidade natal (Asas do Desejo), trazendo seres invisíveis que não pertencem a lugar nenhum. Talvez a um céu imaginário. Os anjos de Wenders pousam sobre as coisas e estão ao lado das pessoas mas ninguém os vê. E seu mecanismo de atenção dilui-se e já não ouvem mais nada, só murmúrios indecifráveis e deles filtram apenas a dor. Para participar da cidade, ser parte dela, integrar-se, é preciso estar preparado para a queda. E qual estrangeiros vagueiam pela cidade que agora concreta, torna-se uma estranha, com novos traçados que deverão ser aprendidos, palmilhados e descobertos aos poucos. Vê-se a cidade de baixo e ela não é a mesma - a grande distância entre o sonho e a realidade é mostrado de uma maneira sublime, pensado no sublime como o abismo que nos espreita. O anjo caído de Wenders é uma recorrência no seu cinema, há muitos anjos caídos e sobretudo deslocados e sem destino. Não importa a cidade, podemos ser estrangeiros no lugar mesmo que nos viu nascer. E aí, a cidade que é nossa, deixa de nos pertencer. Torna-se uma estranha cuja cartografia não dominamos e acabamos por nos perder num labirinto interior que se projeta na urbe que nos envolve.

Na obra de Solanas, realizador argentino, somos apresentados a pessoas que partiram porque não podiam ficar (Tangos – O Exílio de Gardel). Paris era o destino sonhado. Mas a visão que eles têm da cidade é uma estação – onde se chega, mas também se parte. Um lugar no meio, entre dois destinos. Um telefone que traz as vozes que ficaram e o desejo de fazer de Paris a Buenos Aires natal. Paris não é o destino turístico dos amantes, sejam eles de qualquer espécie, aqui é um lugar no meio – estão exilados, não podem voltar. Os turistas comuns são também pessoas que chegam e partem, que se relacionam com a cidade de uma maneira impermanente. O que marca profundamente a diferença é que estes, os turistas do costume, percorrem a cidade cartão postal, sem surpresas, sem recantos, sem nostalgia, pois a sua casa está lá, em outro lugar que é o seu ponto de chegada e partida. Mas os outros, de que fala o filme de Solanas, chegaram e não sabem se vão partir, mesmo que não desejem ficar. Não pertencem à cidade e vivem à margem com os olhos voltados para a estação – partir... Não há o gozo do sonho, há a angústia e a nostalgia embalada pelos tangos de Gardel. O realizador faz uma estranha homenagem a uma cidade que acolhe seus personagens que querem e não querem estar ali. Que querem trazer para junto de si a cidade que ficou para trás. Assim vão reconstruindo uma Paris que só existe dentro de cada um deles. O exílio torna-se menos duro quando a memória reinventa o espaço.

O realizador Walter Sales realiza uma viagem à Lisboa no seu filme Terra Estrangeira. Seus personagens escolhem Lisboa como destino para um autoexílio após uma grande desilusão com seu próprio país. Lisboa é estrangeira, mas é também a cidade mãe, centro de um país que partiu para o atlântico e desbravou uma nova-velha terra. É, de alguma maneira, uma terra não estrangeira, uma doce recordação, um déjà-vu. “Ai como eu queria tanto agora ter uma alma portuguesa para te aconchegar ao meu seio e te poupar esta futuras dores dilaceradas”[3] . Mas ao chegar à Lisboa, aqueles que vieram, talvez para ficar, sentem-se como se estivessem “por fora do movimento da vida” e parece que desaprenderam “a linguagem dos outros”. Há um código especial que eles não conhecem. Há uma palavra-passe que não lhes foi fornecida. E a cidade, tão grande, faz com que eles se misturem no mundo dos invisíveis, que passam pelas ruas e ninguém os vê. Ninguém cumprimenta, ninguém conhece. É uma existência que nega a própria existência. É como se o corpo se fundisse com a calçada e as ruas e os carros e a poluição. E os olhos do invisível, não vê a cidade nova que se está a sua frente, mas vê o porto, o atlântico, tão imenso, atravessado na garganta. E o filme mostra: Lisboa fragmentada, marginal, magnífica quando distante, intangível. E os personagens correm para a praia. E um navio ao longe parte, ou chega. Partir e chegar, como diz a canção, são só dois lados de uma mesma viagem. Moro no menino de Deus... Todos moramos no Menino de Deus, de alguma maneira. E o mundo é apenas o que há em volta.

Notas

[1] BAZIN, André. O Cinema. São Paulo, Brasiliense, 1991, p. 19.
[2] Idem, ib. p.20
[3] Trechos retirados do conto “Dama da Noite” de Caio Fernando Abreu.