No campo das doenças crónicas, existe um conjunto de condições que, apesar de extremamente prevalentes e incapacitantes, continuam a ser minimizadas, mal compreendidas e frequentemente ignoradas por sistemas de saúde, empregadores e até por profissionais da área médica.
São as chamadas doenças invisíveis. Elas não são invisíveis por não existirem, mas porque os seus sinais não aparecem em exames de imagem, análises laboratoriais ou em manifestações físicas facilmente reconhecíveis.
Doenças como fibromialgia, enxaqueca crónica, síndrome da fadiga crónica, endometriose, dores neuropáticas, sequelas da Covid longa e síndrome de burnout exemplificam essa categoria. Embora possuam critérios diagnósticos definidos, muitas delas ainda carecem de marcadores objectivos.
O diagnóstico baseia-se, na maioria das vezes, em relatos clínicos, exclusão de outras causas e interpretação subjectiva do sofrimento descrito. Isso cria um paradoxo: quanto mais o sistema de saúde depende de evidências tangíveis, mais esses pacientes são empurrados para a margem do cuidado, mesmo quando enfrentam sintomas persistentes e debilitantes.
Fibromialgia é uma síndrome caracterizada por dor musculoesquelética generalizada, fadiga intensa, distúrbios do sono, alterações cognitivas (como dificuldade de concentração, chamada de “fibro fog”) e sintomas associados como ansiedade e depressão. Ela não causa inflamações visíveis ou alterações nos exames laboratoriais ou de imagem, o que contribui para sua invisibilidade clínica. O diagnóstico é essencialmente clínico, baseado em critérios específicos, como a presença de dor difusa por mais de três meses e a exclusão de outras condições.
Endometriose ocorre quando o tecido semelhante ao endométrio (que reveste o útero) cresce fora do útero, em locais como ovários, trompas, bexiga ou intestino. Causa dor pélvica crónica, dor durante as relações sexuais (dispareunia), infertilidade e alterações menstruais. Apesar de suas manifestações clínicas importantes, muitas mulheres esperam anos para receber diagnóstico, pois os seus sintomas são banalizados ou confundidos com cólicas menstruais comuns. O diagnóstico definitivo geralmente requer laparoscopia, um exame invasivo, o que retarda o tratamento.
Enxaqueca crónica caracteriza-se por crises de dor de cabeça em pelo menos 15 dias por mês, durante mais de três meses, sendo que pelo menos 8 dias têm características típicas de enxaqueca. Os sintomas incluem dor latejante, unilateral, fotofobia, fonofobia, náuseas e sensibilidade ao movimento. É uma das principais causas de incapacidade no mundo, segundo a OMS, mas ainda subestimada no ambiente de trabalho e nos serviços de saúde, por ser uma condição que “não se vê”. O diagnóstico é clínico e o tratamento exige abordagens preventivas e mudanças no estilo de vida.
Síndrome da fadiga crónica (também conhecida como encefalomielite miálgica) é uma condição caracterizada por fadiga intensa e incapacitante, que não melhora com repouso e piora com esforço físico ou mental (mal-estar pós-esforço). Também pode haver distúrbios do sono, dor, disfunção autonómica, intolerância ortostática e alterações cognitivas. A fisiopatologia ainda não é completamente elucidada, e não há biomarcadores específicos. Isso torna o diagnóstico desafiador, e muitos pacientes enfrentam ceticismo médico e familiar, sendo erroneamente rotulados como “preguiçosos” ou hipocondríacos.
Dor neuropática é uma dor crónica causada por lesão ou disfunção no sistema nervoso central ou periférico. Pode ocorrer após traumas, cirurgias, diabetes, herpes zóster ou em doenças como esclerose múltipla. Os pacientes descrevem sensações como queimação, choque, formigueiro ou dormência, mas os exames nem sempre revelam uma lesão visível. A dor neuropática é de difícil controlo, afecta a qualidade de vida de forma importante e, muitas vezes, o sofrimento é desacreditado por não haver uma causa “óbvia”.
Síndrome pós-Covid (Covid longa) é caracterizada por um conjunto de sintomas que persistem por mais de 12 semanas após a infecção aguda pelo SARS-CoV-2. Os sintomas mais comuns incluem fadiga crónica, dificuldade de concentração (“nevoeiro mental”), falta de ar, taquicardia, dores musculares, distúrbios do sono e intolerância ao esforço físico.
Esses sintomas muitas vezes não se reflectem em exames laboratoriais ou de imagem, gerando desconfiança tanto no meio médico quanto no ambiente de trabalho. Pacientes frequentemente enfrentam descrédito institucional, atrasos no atendimento e negação de direitos previdenciários.
Burnout é uma síndrome de esgotamento emocional ligada ao trabalho, caracterizada por exaustão intensa, cinismo em relação às atividades laborais e sentimento de ineficácia profissional. Embora tenha ganhado reconhecimento formal no CID-11 da OMS como fenômeno ocupacional, seu diagnóstico ainda enfrenta resistência. É comum que o sofrimento emocional e físico associado ao burnout seja minimizado ou confundido com fraqueza pessoal. A dificuldade de quantificar objetivamente seus sintomas leva à deslegitimação institucional, atrasos no afastamento laboral e negação de suporte adequado.
A medicina moderna, construída sobre os pilares da evidência, muitas vezes associa legitimidade clínica à presença de dados objetivos. Nesse modelo, sintomas que não “aparecem” correm o risco de não serem levados a sério. O resultado disso é um ciclo de sofrimento prolongado e deslegitimação. Os pacientes passam por diversos médicos, colecionam exames normais, ouvem frases como “você está estressado”, “isso é ansiedade” ou “não tem nada de errado com você”. Esse processo, além de frustrante, contribui para a deterioração da saúde emocional, para o afastamento das atividades sociais e para o isolamento.
O estigma que acompanha essas condições tem raízes profundas. Culturalmente, ainda associamos doença àquilo que é visível e mensurável. Se a dor não se traduz em um laudo ou exame, ela tende a ser considerada exagero ou invenção. Isso se reflete na maneira como amigos, familiares, colegas de trabalho e empregadores reagem aos relatos dos pacientes. A falta de compreensão leva ao julgamento moral. Quem sente dor crônica mas “parece saudável” é frequentemente visto como preguiçoso, instável, vitimista. Esse tipo de preconceito não apenas desestimula a busca por diagnóstico como compromete a adesão ao tratamento, especialmente quando o paciente começa a internalizar essa descrença social como verdade.
Dentro dos serviços de saúde, a situação não é melhor. O modelo biomédico ainda predomina na formação de profissionais, favorecendo uma prática centrada no diagnóstico objetivo e na resolução rápida. Muitos profissionais ainda não recebem treinamento adequado sobre dor crônica, sofrimento funcional ou condições com etiologia multifatorial. Isso gera resistência à escuta empática e desconfiança diante de sintomas que não se encaixam em protocolos clássicos. A consequência é a perpetuação do descrédito institucional, atrasos diagnósticos e terapias mal indicadas ou ineficazes.
Outro campo onde a invisibilidade se manifesta é o da concessão de direitos. Pacientes com doenças invisíveis enfrentam grandes dificuldades para obter benefícios previdenciários, licenças médicas e adaptações no ambiente de trabalho. Os critérios utilizados por perícias e seguradoras ainda se baseiam, em grande parte, na presença de alterações objetivas e exames compatíveis com incapacidade funcional. Dessa forma, há uma lacuna evidente entre o sofrimento vivido e o reconhecimento institucional, o que agrava ainda mais a exclusão social e econômica, e gera profundo sofrimento moral.
Uma mudança significativa depende, necessariamente, da valorização da escuta clínica e da abordagem integral da pessoa. É preciso reconhecer que nem todo sofrimento cabe em exames laboratoriais. A ciência, cada vez mais, aponta para o papel da neurobiologia da dor crônica, das alterações neuroendócrinas e dos impactos psicossociais na perpetuação do sofrimento. Ignorar essas evidências por apego a modelos ultrapassados é uma forma de negligência que perpetua desigualdades no cuidado.
Nesse contexto, campanhas públicas têm um papel crucial. É fundamental criar estratégias de comunicação que expliquem à população a existência e os impactos das doenças invisíveis, com linguagem acessível e exemplos reais. Iniciativas que envolvam pacientes, profissionais de saúde, educadores, empresas e meios de comunicação podem romper o ciclo do silêncio. É importante também utilizar canais digitais e redes sociais para amplificar as vozes de quem convive com essas doenças, estimulando o reconhecimento da legitimidade do sofrimento e combatendo o preconceito com base em informação de qualidade.
O fortalecimento de redes de apoio e de associações de pacientes também ajuda a garantir visibilidade política e a pressionar por políticas públicas adequadas. São essas vozes organizadas que impulsionam mudanças legislativas e pressionam por financiamento de pesquisas, desenvolvimento de tratamentos específicos e inclusão nos sistemas de atenção primária e de reabilitação funcional.
A formação dos profissionais de saúde precisa passar por uma revisão profunda. Inserir nos currículos conteúdos sobre dor crônica, sofrimento subjetivo, doenças funcionais e abordagem biopsicossocial é uma medida urgente. Além disso, promover educação continuada, empatia clínica e protocolos específicos para essas condições pode melhorar a qualidade da assistência e reduzir os danos causados pela demora no diagnóstico e pela negligência terapêutica.
O estigma das doenças invisíveis não será superado apenas com boa vontade. É necessário compromisso político, mudanças institucionais, atualização profissional e uma nova ética do cuidado, baseada na escuta ativa, na valorização do relato do paciente e no reconhecimento da dor do outro. A invisibilidade dessas condições não está na ausência de sintomas, mas na omissão coletiva diante do sofrimento alheio.
A transformação começa quando o sistema de saúde e a sociedade decidem enxergar o que antes ignoravam. Porque nenhuma dor é invisível para quem a sente.















