Não é de hoje que os sapatos exercem um certo feitiço sobre as mulheres. Há quem diga que é um amor inexplicável, dessas paixões que só fazem sentido para quem sente – ou para quem já se pegou sorrindo diante de uma vitrine, imaginando todas as histórias possíveis em um par de saltos, tênis ou sandálias.
Quem nunca ouviu uma amiga – ou amiga de uma amiga – confessar, entre risos cúmplices e talvez um leve toque de culpa, que já perdeu as contas de quantos pares guarda no armário? E é quase inevitável: sempre tem alguém pronto para perguntar, meio em tom de piada, “mas para que tantos sapatos, se você só tem dois pés?”. O que pouca gente percebe é que, para entender essa relação entre mulheres e sapatos, é preciso caminhar muito além do óbvio. É preciso, talvez, voltar no tempo.
Os primeiros registros do que seriam os ancestrais dos nossos calçados surgem há milhares de anos, numa época em que as necessidades falavam mais alto que os desejos. Peles, fibras, pedaços de couro rudimentar: tudo servia para proteger os pés do frio, das pedras, das surpresas do caminho. Há quem acredite que os egípcios foram pioneiros ao dominar a arte de curtir o couro e fabricar sandálias. Mas também há indícios de que povos paleolíticos já usavam sapatos desde 10.000 a.C. – provas disso foram encontradas em pinturas nas cavernas da França e da Espanha. E há estudiosos que juram que o primeiro calçado digno desse nome surgiu na Mesopotâmia, mais de 3.200 anos atrás. Ou seja, qualquer que seja o ponto de partida, já faz tempo. Há muito tempo.
E ao longo desse tempo, os sapatos foram mudando de significado. Os gregos antigos, sempre criativos, ousaram usar modelos diferentes em cada pé – uma ousadia que só faria sentido séculos depois nas passarelas. Em Roma, os calçados não apenas protegiam: denunciavam de longe a posição social de quem os usava. Na Inglaterra do século XIV, sapatos tão pontudos eram vistos como ameaça à ordem pública. Na França do século XVI, o sofrimento começava já na preparação – os pés precisavam ser mergulhados em água gelada para caber nos sapatos finos da moda.
E não é segredo para ninguém que, na China imperial, o enfaixamento1 dos pés femininos e os calçados minúsculos – de até 15 centímetros – eram símbolos de status e beleza, mas também instrumentos de opressão que deformavam para sempre os passos das mulheres. Em Veneza, por volta de 1600, plataformas altíssimas davam poder e ostentação, mas cobravam seu preço: só com a ajuda de criados era possível caminhar.
É curioso pensar como, ao longo da história, a humanidade foi dando novas camadas de sentido ao simples ato de calçar-se. Os sapatos começaram como pura proteção e, pouco a pouco, se tornaram adorno, signo, expressão de poder, desejo e até objeto de fetiche. Durante séculos, eles foram apenas parte da vestimenta, sem grandes protagonismos. Mas algo mudou. Da proteção do homem rudimentar ao desejo da mulher contemporânea, o sapato trilhou uma longa estrada. O que antes era só uma necessidade virou símbolo. E, hoje, em algum ponto entre o closet e o coração, virou quase companhia de jornada.
Se há algo que diferencia o universo dos sapatos femininos é a multiplicidade de estilos, cores, nomes, usos e emoções. E, claro, todos esses nomes têm histórias: Anabela, Ankle Boot, Bota, Coturno, Escarpin, Mocassim, Mule, Open Boot, Oxford, Rasteira, Sandália, Sapatilha, Stiletto, Tamanco, Tênis, Peep Toe, Princesa… a cada nova temporada, os fashionistas inventam mais uma palavra, e as coleções parecem não ter fim. Em meio a tantas opções, cada mulher encontra um pouco de si: às vezes, é o salto alto que empodera, às vezes, é a sapatilha confortável que acolhe. Tem quem se encontre no tênis, no brilho, na sandália colorida, no clássico preto. Não é só moda, é identidade.
No Brasil e no mundo, algumas marcas ganharam status de desejo e conquistaram espaço definitivo nos armários e no imaginário feminino: Arezzo, Melissa, Dakota, Via Marte, Corello, Dumond, Schutz, Santa Lolla, Chanel, Jimmy Choo… a lista é interminável e poderia, facilmente, ocupar o espaço de um artigo inteiro. Mas, no fundo, o que importa não é o nome na sola, mas a história que cada sapato carrega com quem o usa.
Talvez o segredo esteja nessa mistura de praticidade e poesia, nesse equilíbrio entre o chão que nos espera e o sonho que queremos alcançar. Não é só sobre consumo ou tendência – embora isso também faça parte do jogo. É sobre pertencimento, autoconfiança, experimentação. Como diz a curadora Elizabeth Semmelhack2, do Bata Shoe Museum, “sapatos contam histórias sociais, históricas e pessoais. Eles não apenas mostram onde estivemos, mas também para onde queremos ir”.
Uma frase de autoria desconhecida me chamou atenção pela leveza e delicadeza que representa bem nossa relação com sapatos “Sapatos carregam o peso do nosso corpo e, ao mesmo tempo, sustentam a leveza dos nossos sonhos”. Talvez por isso tantas mulheres lembram com detalhes do primeiro par comprado com o próprio dinheiro – e talvez até esqueçam o nome do primeiro beijo, mas nunca se esqueçam daquele escarpin vermelho que marcou uma noite inesquecível. Sapatos, afinal, não são só objetos: são memória, companhia, proteção e, às vezes, melhores amigos silenciosos para jornadas longas e aventuras diárias.
Sapatos femininos são mais do que itens de moda: são extensões do próprio corpo, símbolos de poder, sensualidade e independência. Quantas vezes não usamos um sapato para celebrar, para enfrentar, para seduzir, para encorajar, para transformar? Quantas vezes um simples par de saltos não mudou nossa postura diante do mundo, mesmo que o mundo não percebesse?
Ao mesmo tempo, é preciso lembrar que, por muito tempo, a relação das mulheres com os sapatos foi alvo de caricaturas, piadas, críticas e até patologização do consumo. Quem nunca ouviu que “mulher devia ser centopeia para usar tudo isso”? Mas o desejo, quando não se transforma em compulsão, pode ser libertador.
O psicanalista Contardo Calligaris4 dizia: “O que diferencia um desejo saudável de um desejo compulsivo é a consciência do prazer”, ou seja, se a escolha de comprar um sapato vem acompanhada de alegria genuína, então é uma forma de se dar afeto, não de se punir. No fundo, quando olhamos para nossos sapatos, estamos olhando para pedaços de nós: conquistas, vontades, medos, paixões e um tanto de história.
E vale lembrar que, apesar da tradição classificar sapatos “femininos” e “masculinos”, as fronteiras da moda e da identidade têm se tornado mais flexíveis. Travestis, mulheres trans, pessoas não binárias e homens que gostam do universo dos calçados femininos também estão, aos poucos, encontrando seu espaço, mesmo que as lojas e as coleções ainda caminhem devagar rumo à verdadeira inclusão. Para o designer e ativista Alok Vaid-Menon5 a moda é uma linguagem e quando abrimos espaço para mais vozes, ampliamos a narrativa e damos novos sentidos ao que significa calçar-se para o mundo.
No fim das contas, paixão não precisa mesmo de justificativa. Tem coisa que a gente sente antes de entender. Talvez seja esse o segredo do amor das mulheres pelos sapatos: ele é feito de liberdade, de escolha, de pequenos prazeres diários e da vontade de seguir caminhando – seja com um par novo, com um velho companheiro de jornada ou, de vez em quando, até descalça, só para lembrar que, mais importante do que o sapato, é o caminho e a felicidade que cada passo pode trazer. E se a gente quiser ser centopeia de alegria, que venham muitos e muitos pares. Porque no final, o que faz sentido é aquilo que faz feliz, mesmo que só a gente entenda.
Referências
1 Why Footbinding Persisted in China for a Millennium.
2 The (Mostly) Complete History of Boots with Bata Shoe Museum Director Elizabeth Semmelhack.
3 Bata Shoe Museum.
4 Contardo Calligaris.
5 Alok Vaid-Menon.
6 Como surgiram os sapatos?
7 A História do Sapato.
8 Por que os sapatos medievais eram pontudos?
9 Exposição mostra história de sofrimento e erotismo do sapato.
10 A história dos saltos altos — das prostitutas de Veneza aos estiletes.
11 Shoes: The Meaning of Style.
12 This Museum Director Focuses Solely on Shoes.
13 The Perfect Fit: What Your Shoes Say About You.
14 Hábito, compulsão ou vício? Entenda as diferenças entre esses comportamentos.
15 Calligaris: Psicanálise e desejo.
16 Harris Reed and Alok Vaid-Menon: “The Future of Fashion Is Gender Free”.
17 Fleeting Footwear Fashions in Ancient Rome.