A São Paulo Fashion Week tem sido palco para talentos que redefinem a moda brasileira, e Felipe Garcia1 é um deles. Ele trouxe para a passarela não apenas sua presença marcante, mas também a essência da periferia, mostrando que a moda está mais democrática do que nunca.
O modelo paulistano nasceu para ser artista, e sua mãe sabia disso. Desde pequeno, foi incentivado a explorar seu próprio estilo e identidade, o que colaborou para construção da sua bagagem de mundo.
De encontros exclusivos destinados à elite e apresentados apenas com foco funcional, os desfiles passaram para um outro patamar, com marcas investindo em performances conceituais, misturando moda, arte e – diga-se de passagem – uma grande pitada teatral. Incorporando recursos visuais e estratégicos que agora interagem com o público de maneira mais direta, democratizando o acesso e transformando o palco – antes intimista – em um grande espetáculo. É nesse cenário que Felipe se destaca, levando a força da periferia para o centro da moda.
A passarela já não é apenas um espaço de venda, mas um palco onde narrativas e culturas são contadas através do vestuário. E é assim que Felipe brilha: emprestando seu corpo para contar histórias, sem nunca perder sua essência.
Como ele mesmo diz:
Na minha visão, a arte vem da periferia.
Em entrevista, ele compartilha sua trajetória, revelando sua visão de mundo e sua relação com a moda.
Spoiler: ele começou por acaso!
Como começou sua carreira? Sempre sonhou em ser modelo ou teve um click em que você pensou: “É isso que eu quero fazer”?
Bom, eu tenho 22 anos e sou da Cidade Tiradentes, em São Paulo. Nunca tive a vontade de ser modelo. Na verdade, minha mãe, quando mais nova, sonhava em ser modelo e designer de moda. Ela sempre dizia que queria que eu seguisse essa carreira, mas, sendo sincero, nunca me vi como modelo. Sou tímido e nunca gostei de tirar fotos.
Tudo mudou quando descobri que ia ser pai. Eu precisava de dinheiro e comecei a fazer alguns trabalhos. Um amigo me apresentou ao mundo da moda e à agência dele. Isso aconteceu cerca de duas ou três semanas antes da São Paulo Fashion Week de 2022. Fiz o casting e passei. Meu primeiro trabalho como modelo, de cara, foi no SPFW. Para alguém que nunca tinha feito nada antes, foi algo enorme, a gente fica espantado, né?
O momento que me fez perceber que queria seguir nessa carreira foi ao final do desfile. Durante o desfile, eu estava muito nervoso, mas, quando chegou minha vez, o nervosismo sumiu. Entrei, desfilei e, quando tudo acabou e fui trocar de roupa, me dei conta: “Eu quero fazer isso da minha vida.”
Depois de um tempo, conversando com minha mãe, percebi que há muitas formas de se envolver com moda: como designer, estilista, de diversas maneiras. Sempre gostei de me vestir bem, e foi aí que decidi fazer faculdade de Moda.
Minha mãe sempre pegou no meu pé, dizendo para eu não sair de casa de qualquer jeito; ela me incentivou a ter meu próprio estilo e identidade. Isso tudo vem dela.
Na minha visão, a arte nasce na periferia.
Quais desafios você encontrou na carreira de modelo?
No mundo da moda, nem tudo são flores. Quando comecei, entrei em uma agência com ideais que não me agradavam, então resolvi sair.
Em 2023, fiquei praticamente parado. Fiz apenas alguns desfiles menores para marcas que atuam na 25 de março. Em 2024, entrei para uma nova agência e participei novamente de trabalhos grandes.
A carreira de modelo no Brasil é complicada. A moda aqui não é tão valorizada como deveria. No início, é difícil encontrar boas referências. Muitas pessoas acabam entrando em agências pouco confiáveis, que exploram sonhos e, às vezes, nem pagam os modelos pelos trabalhos.
Eu, por exemplo, sou modelo, mas também trabalho como CLT e faço faculdade. O problema é você não ter uma certeza, você pode ter diversos trabalhos no mês e no outro você não receber nada, ou você trabalhar e só receber daqui seis meses.
Qual a importância de ser agenciado por uma empresa focada em diversidade, especialmente em modelos negros?
Conheci a Rock Management por meio de um amigo, também negro, que era agenciado por eles. Ele me contou sobre o foco da Rock em diversidade, e isso foi o que me atraiu.
Muitas agências têm como principal objetivo enviar modelos para fora do país, mas o perfil que elas buscam é, geralmente, o padrão europeu: branco, magro e alto. Na minha visão do que eu acompanho da moda, para padrão masculino, eu acho uma falha das agências buscar sempre aquele modelo branco, alto.
A Rock quebra esses padrões. Por exemplo, meu amigo Jhonny desfilou recentemente para a Armani na Itália, o que é algo raro para modelos negros. Eu nunca conheci alguém que tinha ido para fora do país como modelo; daí ele me mostrou esse caminho.
Como é a sua rotina de preparação como modelo? O que você faz?
A semana do desfile é muito intensa. Tem castings todos os dias até o dia do desfile, então estamos sempre nos deslocando. A semana é sempre cuidando da pele e da alimentação. Sempre temos que realizar exames médicos para comprovar que você está apto para os eventos, para saber se a visão está boa, se está escutando bem, se tem algum problema em alguma articulação. Temos que ir no cartório, tem que fazer muita coisa. Eu nunca imaginei, muita gente nem imagina.
E os cuidados com o corpo e a alimentação? Como funcionam?
Eu não sou muito regrado com alimentação no dia a dia, mas, na semana de desfiles, tomo cuidado para não consumir alimentos gordurosos ou doces, porque meu metabolismo é rápido e qualquer deslize aparece espinhas no rosto.
É sempre cobrado que os modelos frequentem a academia e façam RPG para cuidar da postura.
Qual peça não pode faltar no seu guarda-roupa e como você definiria seu estilo?
Para mim, usar apenas uma camiseta e uma calça é básico demais. Eu gosto muito de sobreposição, eu gosto muito, por exemplo, de colete.
Eu sou do extremo leste, temos muita referência do Funk, da cultura periférica no geral, desde pequeno aprendemos a gostar de marcas esportivas, camisa de time ─ tenho uma coleção ─ principalmente do Corinthians.
Meu estilo eu definiria como streetwear. Moda de rua é o que eu mais gosto, sempre adaptando aquilo que eu vi, pegando e usando da minha maneira.
Quando você se veste, busca se expressar ou seguir tendências?
A moda e o estilo, para mim, são sobre expressão. Não vejo problema em seguir tendências, mas, quando uso algo que foge da minha identidade, por exemplo, um estilo Clean boy, eu me sentiria como se estivesse fantasiado.
Você pode conhecer muito sobre uma pessoa só sabendo o tipo de música que ela ouve e o jeito que ela se veste. Olhar alguém na rua e saber o que ela gosta ou até os ideais que ela segue só pelo tipo de roupa que ela usa, isso é muito louco.
No meu caso, eu gosto muito de colocar a minha identidade e me vestir da maneira que eu vejo o mundo.
Tem algo que você acredita que fez diferença na sua carreira de modelo, algum curso ou conselho que recebeu?
Sim, o curso de Design de Moda me ajudou muito a entender melhor como funciona esse meio. Comecei a fazer o curso esse ano (2024), e isso já me abriu várias oportunidades de trabalho. Percebo que as pessoas valorizam quando você entende o que está fazendo.
Algo que me marcou foi um conselho que recebi: ser modelo é como atuar. Nem sempre você é daquele jeito, mas precisa interpretar. Por exemplo, quando uma marca quer uma passada confiante e firme, você precisa compreender o que isso significa, incorporar e expressar isso no seu caminhar e no seu rosto.
Ser modelo é interpretar. Essa frase ficou comigo, e eu sigo isso à risca.
Tem alguma marca com a qual você sonha trabalhar?
Sim, tenho duas marcas nacionais que sou muito grato e que sonho em trabalhar: Lucas Leão – com quem desfilei – e João Pimenta, que também me deu a oportunidade de começar.
Eu estudo bastante a linha da alfaiataria, e acho que seria incrível adaptar esse estilo para a moda periférica. Essas duas marcas são as minhas favoritas no Brasil e as que mais consumo.
Já fora do Brasil, tem muitas marcas que são um sonho, né? como Louis Vuitton e Dior.
Como você enxerga a evolução da indústria da moda nos últimos anos? Algo mudou?
Desde 2022, quando comecei a acompanhar mais desfiles, percebo a questão da diversidade, principalmente no modelo de roupas, como plus size e slim.
A diversidade é importante porque rompe com o padrão europeu que muitas marcas no Brasil costumavam seguir: a mulher magra, branca e loira; ou o homem que não é negro.
Nas edições mais recentes da São Paulo Fashion Week, por exemplo, várias marcas trouxeram a cultura da periferia. Acho isso essencial na moda.
Daqui pra frente, muita coisa pode mudar, a forma como as pessoas olham para a periferia, para a cultura periférica, para o negro.
O que te faria recusar um trabalho? Existe algo que você considera inadmissível?
Quando penso no que é inadmissível, lembro muito da postura da minha primeira agência em relação a algumas amigas minhas que saíram do país para trabalhar. Acho que certas atitudes não deveriam acontecer, especialmente quando você está fora do seu país e em uma posição de vulnerabilidade.
O modelo, ao trabalhar no exterior, conta com duas agências: a agência mãe, que fica no Brasil, e a agência internacional, que o acompanha no país onde ele está. A agência mãe tem a responsabilidade de oferecer suporte, e, quando isso não acontece, considero um descaso.
E descaso, com modelos, maquiadores, fotógrafos, é algo que já presenciei e considero muito errado. Inclusive, assisti à novela Verdades Secretas, e, na época, pensei que aquelas situações fossem “coisa de novela.” Mas, depois de entrar nesse mercado, percebi que, realmente acontece.
Como você se sentiu ao desfilar no São Paulo Fashion Week. Qual foi a sensação e a energia ao entrar na passarela?
No dia do desfile, a gente chega muito cedo. Meu desfile estava marcado para as 21h, mas eu já estava lá às 7h da manhã. Sendo a minha primeira vez, eu sabia o que precisava fazer, mas não tinha noção do que realmente significava estar no SPFW. Eu via pessoas famosas, andando na minha frente, e precisava agir com naturalidade, mesmo sendo fã delas.
Ao longo do dia, ensaiamos, fazemos maquiagem, comemos... E, conforme o desfile se aproxima, o nervosismo só aumenta. Quando chegou o momento de vestir a roupa para a passarela, as minhas pernas começaram a tremer. Na entrada, tem sempre alguém na porta que libera os modelos, e, no instante em que fui autorizado a entrar, todo o nervosismo sumiu.
Na passarela, a luz está na sua frente, não pode olhar para os lados. Você não sabe se sua família está ali; só precisa andar. Como sempre me falaram, o mais importante na passarela é quem está indo, quem está voltando não é mais novidade.
Toda vez que eu desfilo é como se fosse a primeira vez. As mãos suam, as pernas tremem, mas quando piso na passarela, tudo isso desaparece, é incrível.
Tem alguma tendência de moda que você gostaria que voltasse e alguma que deveria ficar no passado?
Hoje em dia, as tendências mudam com uma rapidez impressionante, principalmente nas redes sociais. A cada dia surge algo novo, e, muitas vezes, em uma semana, aquilo já foi esquecido. Acaba tendo coisas que podem ser muito aproveitadas e passa às vezes semanas e todo mundo esquece. Não acho que tendências tem que ser assim, como era antes, durar anos, meses. É até saudável para tirar o consumismo das pessoas, porque hoje a moda fala muito mais sobre consumo, do que sobre a maneira que você se veste.
Uma tendência que eu gostaria que voltasse é a moda dos anos 2000. Para mim, foi um marco importante, especialmente pela influência do hip hop e do rap ─ e é pouco falado. A moda dos anos 2000 conseguiu englobar estilos, como dos anos 1960 a 1990, dando uma repaginada e trazendo cortes e modelagens mais atuais e adaptadas.
Por outro lado, há estilos que não deveriam voltar, como a calça saruel e a skinny, principalmente no público masculino. Esses modelos não valorizam o estilo de forma alguma. Outro exemplo é o estilo Finny Girl, que segue um padrão europeu de moda que não se encaixa para todas as pessoas. Não acho que funciona para todo mundo, pois nem todo mundo pode se sentir confortável, do jeito mais básico possível. Para mim, esse foi um erro nas tendências mais recentes.
Para finalizarmos, o que você gostaria que as pessoas soubessem sobre você?
Agora você me pegou.
Bom, apesar dos pesares, sou uma pessoa muito esforçada e faço questão de levantar a bandeira da periferia. Acredito muito nos artistas daqui, tenho muitos amigos, não só da onde eu moro, que são muito talentosos, então, tento sempre levantar a bandeira da cultura negra e periférica.
Se Deus quiser, um dia vou conseguir fazer um trabalho bem grande.
Também gostaria de agradecer a todos que me apoiaram até aqui. Tem pessoas que me reconhecem no mercado e ficam felizes: "Olha, é o Felipe do desfile!". Acho que isso é o mais importante, ter pessoas ao seu lado que te apoie.
Espero alcançar novos patamares, quem sabe até sair do país.
Nota
1 Rock MMGT.