Falar dos talentos brasileiros que florescem em lugares improváveis é sempre uma alegria. Recentemente, conheci uma atleta cuja trajetória transcende as quadras: Mylene Andrade, uma mulher que decidiu transformar o basquete em uma ponte entre mundos — o da elite esportiva e o das comunidades indígenas da Bahia.
Na pequena Coroa Vermelha, aldeia Pataxó situada no município de Santa Cruz Cabrália, Mylene encontrou o cenário ideal para unir paixão e propósito. O que começou como uma visita para conhecer o local tornou-se uma missão de vida: levar o basquete a jovens que jamais haviam tido contato com o esporte de forma estruturada.
Quando cheguei à aldeia, vi garotos com talento, energia e uma vontade imensa de aprender. Mas faltava tudo: quadra, material, incentivo. Eu sabia que não podia ir embora sem fazer algo.
Uma trajetória construída com garra
A história de Mylene é marcada por disciplina e superação. Nascida em Ponta Grossa (PR), começou a jogar basquete aos 13 anos e, aos 14, já integrava um time adulto. Sua habilidade logo a levou a representar o Brasil em competições internacionais, conquistando títulos expressivos, como os vice-campeonatos mundiais e pan-americanos.
Após uma pausa para cuidar da família, ela voltou ao esporte com a mesma intensidade de sempre, sendo convocada para a seleção brasileira master, onde atua há nove anos na categoria 50+.
Estar ali, competindo com mulheres que compartilham a mesma paixão, me fez entender o poder do esporte na construção da autoestima e da coletividade.
Basquete como ferramenta de transformação
Em Coroa Vermelha, a experiência de Mylene se converteu em ação social. Com recursos próprios e o apoio de poucos parceiros locais, ela fundou o Coroa Basquete, primeiro time indígena da região. O projeto nasceu em quadras improvisadas, entre chão batido e cestas feitas com aros de bicicleta. Hoje, mesmo com uma estrutura simples, o espaço se tornou ponto de encontro da comunidade e símbolo de resistência cultural. Mais do que ensinar fundamentos do esporte, Mylene ensina valores. “O basquete é sobre olhar para o outro, aprender a esperar o momento certo de passar a bola, entender que a vitória é coletiva. É sobre pertencer”, explica.
Atualmente, o projeto envolve cerca de 35 jovens atletas, entre meninos e meninas. Eles aprendem não apenas a arremessar, mas a sonhar com horizontes antes inimagináveis. O esporte trouxe disciplina, autoconfiança e senso de responsabilidade — virtudes que se refletem na vida escolar e familiar de cada um.
O impacto educacional do projeto
A presença do Coroa Basquete na aldeia transformou também a forma como os jovens encaram a escola. Muitos que antes viam os estudos como obrigação passaram a enxergar a educação como parte do mesmo processo de superação que o esporte representa. “Eu costumo dizer que o basquete e a escola jogam no mesmo time”, diz Mylene. “Um ensina a respeitar as regras, o outro ensina a entender o mundo. Juntos, eles formam cidadãos mais conscientes.”
Professores locais relatam que os índices de participação e frequência escolar melhoraram desde o início da iniciativa. Jovens que antes faltavam às aulas para trabalhar ou ajudar em casa agora fazem questão de manter as notas em dia para continuar treinando. “A prática esportiva ajudou a disciplinar o tempo e o pensamento deles”, conta uma educadora da comunidade. “Eles aprenderam a traçar metas e a lidar com frustrações, algo que se reflete diretamente em sala de aula.”
Além disso, o projeto tem servido como ferramenta de valorização cultural. Os treinos costumam começar com cantos e saudações Pataxó, reforçando a identidade indígena e o orgulho de pertencer à comunidade. “É bonito ver como eles equilibram tradição e modernidade”, diz Mylene. “O basquete chega como novidade, mas é absorvido como parte do jeito Pataxó de viver em grupo.”
Com o apoio de professores e lideranças locais, Mylene também iniciou oficinas de leitura e rodas de conversa sobre temas como igualdade, liderança e respeito às diferenças. O objetivo é ampliar o alcance educativo do projeto, mostrando que o esporte pode ser o primeiro passo de uma formação mais ampla — humana, social e intelectual.
Vozes da comunidade
Entre os jovens beneficiados estão Txênã e Yuri, dois exemplos vivos do impacto da iniciativa. “Antes, o basquete era só um jogo que eu via na televisão”, diz Txênã. “Hoje, é parte da minha identidade. Ele me ensinou a confiar em mim e me conectar com a minha comunidade.” Já Yuri, um dos primeiros integrantes do time, fala com emoção:
Formar esse grupo foi como plantar uma semente de esperança. A cada cesta, a gente planta mais uma. Nosso sonho é ver o basquete chegar a outras aldeias.
O projeto também promove o encontro entre culturas. Jovens indígenas participam de campeonatos locais, interagem com equipes de outras cidades e ampliam suas perspectivas de futuro. “Cada jogo é uma troca de saberes. Eles mostram a força e a beleza do povo Pataxó, e o público aprende a olhar além dos estereótipos”, diz Mylene.
Reconhecimento e desafios. O reconhecimento tem vindo em forma de medalhas, convites e homenagens. Recentemente, Mylene foi agraciada pela própria comunidade Pataxó em uma cerimônia simbólica após a conquista de mais uma medalha com o Coroa Basquete. Mas os desafios ainda são muitos. Faltam recursos financeiros, uniformes, bolas, equipamentos e, sobretudo, uma quadra adequada. “Manter um projeto social no Brasil é um exercício constante de fé”, desabafa. “Mas cada sorriso desses meninos me lembra por que vale a pena.”
Sua colega de seleção, Doriane Inês Kohllander, resume bem a força de Mylene: “Ela é uma mulher incansável. Não há dificuldade que ela não encare. Dentro e fora da quadra, ela é o retrato da generosidade e da perseverança.”
Uma semente que se espalha
Com o apoio dos atletas e das famílias locais, Mylene sonha agora em expandir o projeto para outras aldeias indígenas da Bahia e de outros estados. A ideia é formar multiplicadores — jovens que, após se desenvolverem no esporte, tornem-se líderes e treinadores em suas comunidades. “Não quero só ensinar basquete”, diz ela. “Quero formar pessoas que levem adiante essa energia, que usem o esporte como ferramenta de união e autoestima.”
A jornada de Mylene Andrade é um testemunho do poder transformador do esporte e da força feminina como agente de mudança. Em Coroa Vermelha, cada cesta é mais do que um ponto no placar: é um ato de resistência, de amor e de esperança. Como escreveu Émile Durkheim:
A educação é o processo pelo qual a sociedade perpetua e renova a si mesma, transmitindo conhecimentos, valores e habilidades essenciais para a convivência e o desenvolvimento pessoal e social.















