Se recordar implica uma existência prévia de nós próprios, então em sentido linear, memória traduz a ideia de vida. No mesmo sentido, o conceito ou a ideia de arquivo, pressupõe a garantia e preservação dessa mesma existência. Se, por exemplo, nós conseguirmos identificar numa fotografia registada no passado, à partida, seremos capazes de perceber que existimos dentro desse período. Parece então claro que a indissociável relação entre memória e arquivo, alimenta a sua recíproca autenticidade.
Por sua vez, recolher, entender, categorizar e arquivar representam palavras pertencentes ao campo lexical de arquivo, que no entanto não plasmam apenas deontologias inerentes a um modos operandi focado na preservação, mas acima de tudo numa composição de gestos, que dentro da sua própria duração, implicam a produção de sentidos que em potência constituem a ideia de um consequente campo de reflexão.
Então se o princípio de organização que parece dar sentido aos arquivos se dá pela gestão de informação, a escolha contingente que determina a seleção encontra-se radicado numa atitude passiva de preservação?
Recolher dados que se encontrem entre o objeto e o facto, pressupõe uma análise aproximado à veracidade do acontecimento, no entanto e uma vez que todos somos contaminados pela inter subjectiva, manifesta-se a ideia consequente, de uma interpretação geradora de novos significados em relação ao objeto e ao facto. O arquivo deixa então de ser passivo para estar em constante relação com o presente.
Para assumir em forma de pergunta, a possibilidade remota de uma resposta, procuro apoiar-me na experiência artística para declarar a fraturante relação entre a etnografia e o arquivo, como partes dependentes de uma ação subjectiva, que retira o arquivo da sua aparente passividade, numa atitude interventiva que cruza categoricamente o presente e o passado.
Em consonância com estas considerações interessa-me o que o filósofo francês Thiery deduve escreve no livro “Kant after Duchamp”: “What works of art have in common is what we have invested in them, driven by our common necessity to produce signs that in turn produce us.” [ O que as obras de arte têm em comum é aquilo que investimos nelas, impulsionados pela nossa necessidade comum de produzir sinais que, por sua vez, nos produzem.]
A produção de sentidos provoca ressonâncias que residem na base da inusitada relação com uma ação que a partir da sua acústica evocam outros sentidos. Isto é, o que todas as atividades têm em comum, provavelmente mais evidente na arte, é a produção de sentidos. Uma maleável capacidade de provocar uma transformação a partir da inequívoca simplicidade de um gesto ou discurso, que em última instância nos retrata.
Em orbita das múltiplas considerações sobre a arte, entende-se que as suas definições quase polimórficas a que Roland Barthes, chamaria de “rustle of language”, a mesma apenas existe porque cada um dos seus intérpretes e leitores está entre os produtores que em última instância lhe dá sentido. Um pouco à semelhança do que acontece com o arquivo que se consubstancia em detrimento das contaminações subjetivos, que lhe atribuem a maleabilidade geradora de sentidos e significados.
Hal Foster, contemporâneo filósofo e crítico de arte, coloca em consideração, a partir do seu livro “The Artist as Ethnographer?” a ideia de que a práticas artística e a arquivística são ambos processos criativos que funcionam em simultâneo como meios de processamento de memória, de comunicação e de conhecimento humano.
Numa atitude quase antropológica e etnográfica, a experiência artística e curatorial, retira a partir da dialética, imagens, conceitos, dicotomias, que inspiram os assuntos do seu consequente trabalho, desdobrando discrepâncias que provocam múltiplas concepções da verdade e realidade, tanto sobre presente como sobre o passado, especulando em última instância sobre o futuro. As ressonâncias que provocam a narrativa artística somam a ideia de arquivo ou memória ao inerente estado de reflexão, sintomático do pensamento crítico.
O exercício radicado na subtração de memória do seu arquivo, provoca uma alteração de sentido que segundo a designer, investigadora e mediadora cultural Mindy Seu, nos ajuda a aceitar a ideia de múltiplas verdades, em vez de uma história objetiva e única. Recolher, entender, categorizar e arquivar, traduzem-se neste sentido em gestos multidisciplinares que despertam sentidos quando são retirados da sua aparente função normativa.
Por outro lado, a fotógrafa Daniela Spector considera que o arquivo pode mesmo não existir apenas como um meio de expressão criativa, mas também como uma forma de "terapia". Em setembro de 2019, a mãe de Daniela faleceu. Para além de um acontecimento tão traumático, Daniela lembra-se de sentir "a ligação à minha cultura e história a vacilar". Na tentativa de atenuar e remediar este sentimento, Daniela voltou-se para os pertences pessoais da sua mãe — as muitas fotografias e objectos que ela tinha coleccionado ao longo da sua vida. A partir daí, estas imagens passaram a informar o seu projeto I Forbid You to Forget Me.
Num gesto que se assemelha ao trabalho de Daniela Spector e a propósito das idiossincrasias que a memória e o arquivo estendem ao campo de reflexão, convidei em 2019 a arquiteta, designer e fotógrafa chilena, Karina Vukovic a expor o seu projeto mais recente “Dom: Registos da Memória do Corpo” na Galeria V em Coimbra. A exposição multidisciplinar propunha refletir sobre o fenómeno da imigração, ativada pelo arquivo e memória, através do registo fotográfico resultante de uma performance realizada sem público em março de 2017, na aldeia de Brgulje na Croácia. Dom, começa com um objeto: um avental feito à mão pela antepassada bisavó da artista Karina Vuković, que ficou guardado durante 20 anos como extensão do corpo e da memória. Em 2017, o mesmo foi devolvido ao lugar que o viu ser entregue à artista quando ainda era uma criança. Por via desse gesto que se repercute ao longo do tempo a Karina ativou um corpo ausente através de um objeto que percorre não apenas o espaço, mas a memória coletiva do espaço.
A presente dialética elaborada em orbita das ressonâncias do arquivo, atinge contornos mais abrangentes quando a escritora Olivia Hingley, integra sobre o tema o seguinte:
In its heyday, it seemed Facebook existed solely as a space to upload 250-photo albums of one night out with your mates. Now, any trip onto your Instagram explore page will likely surface an ‘archive page’ dedicated to some niche topic, from folk art to satisfying scenes from The Simpsons. While these instances may be simplified as the rise of an ‘image-obsessed society’, it could instead be argued that such acts speak to the ways in which the act of archiving has altered in a rapidly changing world.
[No seu auge, parecia que o Facebook existia apenas como um espaço para carregar álbuns com 250 fotos de uma noite fora com os amigos. Agora, qualquer visita à página de exploração do Instagram provavelmente trará à tona uma 'página de arquivo' dedicada a algum tópico específico, desde arte folclórica até cenas satisfatórias dos Simpsons. Embora esses casos possam ser simplificados como o surgimento de uma 'sociedade obcecada por imagens', pode-se argumentar que tais atos refletem as maneiras como o ato de arquivar se alterou num mundo em rápida mudança.]
De facto as redes sociais em geral, parecem concordar com o pensamento de Hal Foster, na medida em que os perfis virtuais, funcionam não apenas como plataformas de comunicação, mas de arquivo de informação, previamente organizadas com base numa intenção contornada por traços subjetivos, que em última instância evocam ressonâncias sobre a sua ativa relação com o passado. Manifestam-se intenções e discursos que procuram de novo, produzir sentidos, a partir da partilha de informação específica.
Somado o arquivo a campo de reflexão, manifestam-se virtuosismos que distinguem a sua vitalidade da sua existência que com tudo quanto de mais singular tem, constitui uma inquietação filosófica, que retira do confuso murmúrio a passiva preservação para dar lugar a múltiplas existências, transformando a nossa relação com o passado e, como tal, a arqueologia do saber.