If I didn't do it directly I wouldn't be able to tap that subconscious sort of thing... mostly I was trying to capture the direct, improvised, fresh sort of feeling... I thought of it more as related to the automatic writing the Surrealists were interested in. And I thought of it as kind of a picture writing... But it was painterly. I was primarily concerned with the painterly character of what I was doing.

(Adolph Gottlieb)

A minha primeira entrada no universo do artista visual Xana foi através de seus desenhos. Queria conhecer melhor o Alexandre Alves Barata, com quem viria a criar o projeto da Licenciatura em Artes Visuais da Universidade do Algarve, e deparei-me com as obras do Xana – azuis, vermelhos e amarelos intensos. Figuras desenhadas como se o artista estivesse a praticar um alfabeto novo, desconhecido, cuja chave de decifração não nos era concedida. À nossa frente, apenas o desenho. Um espaço em branco e dentro dele linhas espessas, formas quase geométricas e traços, que eu considero, prazerosos. Porque é disso que me lembro da primeira obra do Xana – pareceu-me espreitar, vendo o desenho, o prazer que o artista teve ao criá-lo. Pareceu-me vislumbrar a sua felicidade, que ficou impressa no gesto transferido para a caneta. Um traço feliz, talvez seja esta a minha melhor definição da sua obra. Felicidade que o artista assume como uma atitude e como uma provocação – ser feliz não é ser indiferente ao mundo à nossa volta, que muitas vezes parece estar a ruir. Acostumamo-nos a pensar na Arte como sendo um assunto sério, e essa seriedade não pode ser maculada com a leveza, tantas vezes confundida com leviandade.

Meu segundo contacto com a obra do Xana deu-se numa praia do Algarve. O artista desenvolveu um projeto escultórico/performativo no pico do verão das movimentadas e concorridas praias algarvias. Muros vermelhos feitos de baldes sobrepostos. Gigantescas manchas vermelhas na areia nada imaculada das praias. Muros móveis, frágeis, mas imponentes. Cada nova construção, por mais lúdica que fosse, não ocultava a provocação do artista – muros que dividem o quê? Porquê muros? Porquê no verão? Os muros, e a sua construção, eram também felizes, leves, lúdicos. Mas a felicidade, ou a leveza, na obra de Xana, não são sinónimos de indiferença, de desligamento do mundo. Ezra Pound afirmou que “os artistas são a antena da raça (humana)” porque captam tudo antes e porque são capazes de (ante)ver. A obra do Xana é como a antena de um rádio pirata – capta tudo, mas transmite apenas aquilo que ao artista interessa ou que lhe dá algum prazer. Não há na sua atitude, que se reflete nas suas criações, qualquer gesto de submissão, seja a padrões de gosto, de modas, de demandas sociais. O artista é livre e o seu exercício da liberdade é feliz. E belo. Porque a beleza emana do seu alfabeto indecifrável, mas em contínua construção. Um alfabeto que pode ser feito de matérias plásticas ou desenhado a caneta da china, ou de tinta acrílica, sobre dezenas de papéis. O gesto é incontrolável, mesmo que recorrente.

Os desenhos que o Xana nos mostra nesta exposição fazem-me lembrar as Pictografias de Adolph Gottlieb – exercícios de automatismo, influenciado por este aspeto particular do movimento Surrealista, que libertam a mão, e a mente, do artista, e que se convertem em formas, biomorfas ou geométricas. Formas que, mesmo sendo produzidas de maneira quase automática, diria mesmo inconsciente, reaparecem como recorrências no momento em que o artista decide que o gesto produziu uma obra. No momento em que ele decide que o desenho está pronto. Que existe em si mesmo, fora do gesto. No momento em que o artista, conscientemente, faz as suas escolhas.

A Passagem é um título ambíguo que nos faz perguntar: passagem para onde? Cada um dos 46 desenhos, agrupados por recorrências formais, ou organizados como núcleos sintáticos, fazem-nos entrever uma passagem para além da planura do papel. Um arco, um portal, um buraco na rede de linhas entrelaçadas, um espaço fora. É interessante que há uma tridimensionalidade não intencional que torna o desenho quase escultórico. Também aqui uma possível explicação para o título – a passagem do bidimensional para a sua existência mais plena fora dos limites do quadro.

A obra de Xana é composta de traços felizes. E a felicidade do artista é contagiante – ao penetrar no seu universo, ou tentar decifrar o seu alfabeto, passamos do cinza árido quotidiano e banal e chegamos ao lugar das cores, das mil possibilidades, dos desvios. Chegamos ao lugar da Arte.