O homem, embora não se lembre, é feito de matéria. A carne é apenas uma versão ultrassofisticada dessa matéria. A carne é matéria viva, animada, consciente, mas, no fundo, é composta de tantos outros elementos inanimados que estão presentes no universo. O homem é coisa e acha que não é. O ser humano é natureza, e a natureza é tudo.

Os gregos, influenciados por outros povos anteriores a eles, diziam que tudo que existe é composto por 4 elementos: terra, água, ar e fogo. Também diziam que esses elementos seriam imanência do superior, assim teriam uma certa forma de consciência, memória e inteligência, que estaria guardada neles, ainda que essas forças estejam ao nosso alcance e que o homem as acesse o tempo todo sem perceber. Nas escrituras, já se dizia: “ELE fez o homem do barro (terra e água/elementos fecundos), assoprou em suas narinas (ar/vida) e desceu nele uma centelha de si mesmo (fogo/espírito)”. Uma amostra clara de que nós sabemos instintivamente que somos matéria e que guardamos em nós todas as respostas e todos os mistérios.

Se você parar para pensar, certos alimentos podem deixá-lo mais inteligente e forte, alguns calmos e serenos, outros apáticos ou frágeis. São os átomos que você ingere agindo na sua constituição e moldando o que você é. Até mamãe sabe disso, “come, filho!”

O artifício natural

Qual a diferença entre algo natural e artificial? Conceitos como artificial são meras palavras para diferenciar o que o homem fez do que a natureza faz. O artificial também é natural, pois se o homem, sendo parte da natureza, o faz, então o artificial é uma invenção natural que surge a partir da genialidade humana. É a natureza alterada por meio de nós.

Se você pensar, a teia de uma aranha é artificial ou natural? A teia não existe por si só, mas a aranha, elemento vivo, a cria a partir de seu corpo, inteligência e matéria assimilada. Isso responde que não há nada que não seja natural no mundo. Uma camiseta de algodão é matéria natural, moldada por nosso intelecto. Artifício quer dizer algo feito com muita habilidade, capacidade que também se encontra nos animais, mas o ser humano é o animal que o leva mais longe.

Um comprimido tem princípios naturais combinados e potencializados pela genialidade humana, mas no fim os átomos vêm dos mesmos lugares. Os aviões, a sua televisão, a geladeira, em última instância, são todas coisas naturais. Natural, artificial, são meras convenções para que sejamos específicos ao nos comunicar. No fundo, são apenas manifestações da matéria por meios diferentes.

Desde que o homem surgiu, ele usou do que tinha ao redor para dar o que lhe faltava. A faca é a garra que não tem. A roupa, o pelo que lhe falta. O sapato, seu casco. E dessas necessidades básicas, à medida que combinava suas invenções, surgiram as coisas mais complexas. O carro, uma mistura de pernas super-rápidas, armadura e abrigo móvel. O helicóptero, sua imitação da libélula. O jato, suas super asas.

A tecnologia em nós

E agora as invenções estão adentrando nosso corpo. Os materiais começam a se integrar à nossa fisiologia por meio dos avanços técnicos. São muitas as possibilidades, mas vou falar aqui dos membros e órgãos que estão surgindo para alterar o ser humano. Tudo é possível criar para substituir, imitar ou melhorar a performance. Uma cadeira de rodas ou uma muleta também são substitutos milenares das pernas. Mas nos últimos anos, com a disseminação ampla da informação ocasionada pelo desenvolvimento dos meios de comunicação, os avanços têm sido muito significativos. Finalmente, estamos entrando em um tempo em que as peças de substituição chamadas próteses e órteses estão ficando realmente eficientes, inteligentes e, o melhor de tudo, relativamente baratas. A ciência da substituição está ficando finalmente popular, ao alcance de todos, essa é a grande sacada.

Com as novas possibilidades que se abrem, como a internet das coisas (objetos inteligentes e conectados), fibra ótica conectada ao sistema nervoso, nanotecnologia, inteligência artificial integrada, materiais que imitam perfeitamente a carne e dispositivos personalizados, feitos sob medida, estamos realmente chegando ao homem biônico. Não é mais uma ficção, as empresas estão investindo largamente em aparelhos que resolvam questões físicas, pois agora além de ser viável, é mais fácil. Antes, construir equipamentos para deficientes era caro, trabalhoso e com pouco retorno financeiro.

Biônico é algo externo integrado às nossas funções biológicas. Um exoesqueleto, um coração ou um fígado de laboratório, olhos digitais, fluxo de consciência escoado para a rede, pernas de metal e sensíveis, são coisas já feitas ou próximas. Como no fim das coisas, o que move o mundo é a economia, começa uma corrida tecnológica para ser aqueles que vão resolver estas questões. As empresas estão empenhadas nisso porque na esteira vem o lucro e talvez uma fama inquebrável. Claro, imagine ser a empresa que devolveu os movimentos das pernas de alguém ou que fez o cego ver? E é um mercado amplo e cheio de clientes. Segundo a ONU, mais de 1 bilhão de pessoas vivem com algum tipo de deficiência.

Tenho um amigo, totalmente independente, que perdeu um dos braços num acidente. Ele faz tudo sozinho, não é de reclamar, mas claro que o braço lhe faz falta. Uma vez eu, ele e outro amigo que usa perna mecânica falávamos sobre próteses. O nosso amigo que usa perna de carbono falava sobre a utilidade da peça, preço, os prós e contras. Então, o primeiro disse que para o seu caso não fazia sentido ter um braço postiço, visto que era um peso morto, não servia para nada e até o atrapalhava. Entendi e acreditei nele, de forma prática, os braços não tinham uma funcionalidade efetiva. E secretamente sonhei com um braço que fosse útil de verdade, que esse meu amigo e tantos outros pudessem usar algo que fosse algo a mais e não a menos. Essa conversa foi há apenas 3 anos. Hoje, começo a ver um horizonte para essas máquinas, que possam realmente ajudar nossos irmãos e irmãs a terem uma vida de qualidade igual ou até maior à dos chamados normais... E isso é presente, não é futuro.

Tenho acompanhado com entusiasmo os avanços na área. Braços mecânicos já se viram de monte por aí, desde os de uma performance pífia até os mais ou menos, quase sempre feios e duros, longe de ser algo belo e elegante como os feitos pela natureza, mas... recentemente, vi um que realmente me impressionou: um braço “eletrônico” (não sei se seria esse o termo certo), que usa de robótica no esqueleto e pele que imita músculos. E, para minha surpresa, que usa de água para imitar os movimentos fluidos e belos de nosso corpo. Faz todo sentido, visto que nós somos uma máquina pneumática e hidráulica, nossa força e movimentos vêm do ar e de uma combinação entre sólido e líquido.

Novas soluções, novas perguntas

Se as pessoas com deficiência serão as primeiras beneficiadas dessas soluções, também serão os primeiros novos humanos. Eles serão parte do advento de uma nova era, uma separação entre antes e depois, do humano totalmente orgânico ao misto, com componentes diversos em seu corpo: plástico, fibra, óleo, metais, o que mais a invenção mandar. Os benefícios serão imensos, claro. Vamos nos deparar com uma nova etapa na existência humana. Porém, o que virá depois? Isso terá impacto direto em muitos campos: éticos, sociais, profissionais. Como será, por exemplo, as mudanças em convênios médicos, seguros, competições esportivas, legislação, etc.? Imagine se melhorias por meio de membros eletromecânicos se tornarem baratas e populares. Podemos fazer muitas perguntas: Haverá lojas de assistência técnica em cada esquina para eventuais consertos e ajustes? O cara que vai arrumar sua prótese será um técnico, um médico ou um pouco de cada? Com isso, surgirão novas profissões? Sua prótese virá do Japão, China, Alemanha ou será produzida pelo Brasil? E a garantia? Os convênios médicos vão cobrir as partes não biológicas? Os dispositivos inseridos em seu corpo serão conectados à rede? Se sim, o que será compartilhado? Qual o nível de privacidade da sua vida? A que dados as empresas terão acesso? Suas emoções, sua fisiologia, suas escolhas, sua vida pessoal? E indo mais longe: Uma pessoa com intervenções, digamos, de parte considerável do corpo que venha a falecer, ela será enterrada com os aparelhos? Ou, dependendo do valor, deixará as partes como espólio para a família e só ficará no caixão a parte orgânica? Como o juiz fará essa divisão? Será que, dependendo do valor sentimental, veremos um braço na parede da sala, ao que alguém dirá “Era o braço do meu pai.”? Um homem que tenha, por algum motivo, seu membro sexual amputado, não poderá trocá-lo por um maior, mais vistoso e até mais eficiente? Não seria uma tentação? Haverá uma meta-olimpíada, onde esses super-humanos competirão para ver quem é o mais apto? Será então uma mistura de Fórmula 1 com jogos convencionais? São tantas as possibilidades, mas também novas perguntas (e problemas) vão surgir.

Dilemas da raça

Por fim, se logo estaremos num patamar onde pessoas “normais” em busca de melhorias irão também fazer intervenções em seus corpos, o avanço terá seu preço. Há o perigo da futilização. Assim como hoje pode-se fazer tatuagens em cada esquina, as facilidades de mudanças na estrutura de nascimento podem beirar a banalização do corpo e o fetiche por alterações virar uma doença. Veja os viciados em cirurgia plástica e você terá ideia do que estou falando. Talvez no futuro, logo ali, ver alguém com um corpo sem intervenções seja tão difícil quanto passar por um jovem sem tatuagens. Além disso, o caminho também pode ser perdido. No mundo real, com a corrida econômica, a ganância das empresas e o fascínio da propaganda, tudo pode ser desvirtuado. Ainda, toda tecnologia gera resíduo, excessos e algum desvio também. A energia atômica originalmente tinha a intenção de ser usada para o bem, lembra? Nesse cenário mundano menos idealizado, as questões serão: O que faremos com pernas que correm tão rápido? Que chutam tão forte? Com ouvidos em sonar? Com olhos que enxergam tão longe? Que veem em raio x? Faremos o bem? Faremos o mal? Mas se tratando da raça humana, insaciável e desesperada, a mudança virá de qualquer forma. Será, como muitas coisas, inevitável, pois o ser humano quer sempre mais e nunca está satisfeito. Algo para se pensar no futuro próximo. O novo humano talvez esteja perto. Orgânico, eletrônico. Mais forte, mais rápido. Meio terra meio pedra meio metal. Um ciborgue, um semideus ou uma aberração. E quando isso acontecer, não será o homem artificial, mas sim o novo natural. Mas que no fim a inteligência com esses novos poderes é o que prevaleça... é o que esperamos.