Gostaria de encontrar, no tempo que nos resta, o abraço que reúne, num só gesto, a arte e a vida - o que os alemães definem como “Gesamtwerk” - para propor uma passagem crítica pelo jazz em geral e pela sua psique invariavelmente atraída pelo futuro, em particular.
É certo que, se o que é popular é o pão, o jazz é o vinho, numa medida de alienação gustativa que só se alcança com ouvidos e mente bem abertos. Por sua vez, a sua presença à mesa ou mesmo nas discussões mais eloquentes verifica-se pelo modo como se acomodou às distintas realidades, à base do improviso (ou não), refletindo, em suma, a tónica das gerações. À escala das suas primeiras ressonâncias, constituída por poucos músicos, poucos discos, poucos escritos, mas com uma paixão inquietante, o jazz é o género musical que, segundo Sammy Davis Jr., nasceu na valeta, impedindo-o de subir ao passeio.
Nada nasce, tudo cresce, e como tal, o jazz, fruto de uma cultura de contornos muito particulares, manifesta-se intuitivamente através de um conjunto de idiossincrasias, tornando a sua luta numa procura pela expressão artística assente sobre o ímpeto do improviso numa relação estreita com as diásporas africanas.
Era uma vez em Nova Orleães, nas margens do Mississípi, no centro de uma região em emancipação, um centro cultural delimitado mas com nome: Storyville. Dizem línguas autorizadas que o exagero histórico, a imprecisão, é neste caso aceitável quando se afirma que o jazz nasceu de vícios e prazeres, no centro da neblina com cheiro a tabaco, onde deslizavam garrafas e se bebia sempre em pé, com o ímpeto sagaz de acompanhar as deambulações musicais, enquanto epíteto para uma fuga provocada sobre o consciente que encontra na música a sua relação visceral. Enfim, confortos de um inconsciente mais apurado do que a sua consciência.
Todas as festas muito participadas que ocorriam nas folgas quando os fardos de algodão seguiam em alto mar transformavam-se em episódios catalisadores, difundindo sobre a música uma ação espontânea de produções e transformações em que os batuques se misturavam com os violinos e as vassouras, retiradas das suas funções, faziam de contrabaixo, atando-lhes uma corda em tensão. Parecia uma babilónia em que o racismo caminhava de mão dada com a tolerância, num gesto paradoxal, que se prendia à realidade através da música e do rio que tinha importância vital para dentro e fora dos Estados Unidos. Consubstanciava-se uma realidade que obliterava a moralidade em detrimento de um interesse coletivo mais relevante do que a decadente humilhação cultural.
Através dos barcos que subiam o rio, transportavam num gesto quase simbólico a contínua migração de uma cultura, personalizada, famosa e densa. Em estado de fusão com a cultura europeísta, por cada estação em que ao longo do seu percurso suspendiam as grandes rodas dentadas que trincavam o rio, colidiam princípios e ideias que davam origem ao desdobramento de novos sinais de vida, tanto sob a forma da música sincrética como do "franglais", que agitava os mútuos estrangeirismos num gesto igualmente emancipado da gramática local.
Os anos passavam, como é obrigação do ministério do tempo, e na sequência da Primeira Guerra Mundial surgiu a necessidade de alongar as linhas de migração desta cultura quase tão densa quanto onírica. Cosmopolizou-se o norte, Chicago para ser mais específico, ficando para trás as suas raízes de blues. Ou melhor, foram-se fragmentando ao longo do percurso, deixando ao gosto a sua herança para quem quisesse dar-lhe uso. Por razões "extramusicais", Storyville foi fechada. A realidade febril substituiu os campos de algodão. Manteve-se, no entanto, intocável, a instrumentalização humana, em órbita de uma lei seca, que disfarçada sobre chávenas de chá, trazia a animação usurpada à cena musical.
A vitalidade musical transferiu-se num gesto semelhante ao toque da água com aguarelas. Expande-se, ocupando invariavelmente o seu espaço. Cria-se uma simbiose policromática até alcançar o seu repouso finito. A música transforma-se ou adapta-se? Dá-se rutura ou união?
No que toca à instrumentação propriamente dita, o violino foi substituído pela trompete. O banjo e a tuba foram substituídos pela guitarra e o baixo. A improvisação, espírito nuclear do jazz, tornou-se rotina, e impunha-se uma música estável. O jazz alcançaria, sobre o ímpeto da transformação, uma função desejada pelos autores que encontram neste novo espírito do jazz a faculdade do juízo em conformidade com a sua utilidade pragmática.
O pan-africanismo adaptado ao fetiche ocidental pressupõe, perante esta perspetiva, o declínio moral. Uma luta improvável, não fossem os séculos de ambição do patriarcado a colocar em causa a indiferença vital sobre uma ação que provoca ressentimento e, por sua vez, àqueles que Nietzsche chamaria de "fatalismo russo". Trata-se de iniciar uma guerra sem filtros ou critérios e, no fim do declínio, deitar-se na neve e empregar a doença que nunca nos deixou.
Perante este cenário, o jazz adapta-se novamente para se tornar num discurso errático, efervescente e reminiscente. Apoia o seu ímpeto sobre uma lupa, por meio do qual torna visível uma geral calamidade, mas oculta e dificilmente apreensível. Surgem os vestígios de um pathos agressor, na medida da luta contra causas vitoriosas, ou prestes a sê-lo. Surpreender a cultura dominante que confunde o que é abundante com o que é autêntico, o tardio majestoso com o verdadeiro original, em flagrante delito.
Outro renascimento do jazz inicia-se após o fim da Segunda Guerra Mundial, retomando do seu núcleo a experiência esotérica, atenta a uma psicologia sensível aos estímulos internos e externos em órbita dos princípios críticos fortemente apoiados sobre um novo sentido existencialista.
Toda a luta pode ser um ato de benevolência, de aceitação de si próprio. Nessa medida, o jazz fez-se ouvir. Era nessa época, de lei tocar alto, contagiando a todos que partilhavam o mesmo espaço, a tocarem ao mesmo tempo. Consubstanciar a disciplina e a estrutura enquanto consequências da melodia, contudo, mais tímida e discreta, dando primazia à festa.
Este extenso percurso, determinante para a definição de uma psicologia própria do género, é face e cicatriz sagaz para o qual os indícios de decadência e progresso têm um olfato fino e apurado. Explica, para além da sua longa existência em constante desconstrução pela imensa comunidade que o acompanha, a ausência de preocupações perante o conjunto de preposições que talvez o distingue.
Parece estar na base morfológica das expansões criativas do pós-guerra um espírito inquietante em relação ao progresso, que por sua vez, pressupõe uma necessidade visceral de perseguir os limites. Através da experiência, do uso liberal e inconsciente do erro ou das interferências retiradas do binómio da razão, torna-se possível gerar fluxos que alcançam a categoria de algo infinitamente flexível e, nesse caso, projeta-se uma linguagem expandida, na medida do cruzamento e aceitação de outro tipo de matéria sonora, dentro da sua esfera de produção musical.
De distintas formas, creio não ter existido o blues sem a blue note. A blue note sem os juke joints. Os próprios jukes joints, sem a desordem ou o ímpeto de lutar pela liberdade. Ou indo mais à frente pensar na existência do incontornável Robert Johnson sem os progressos de Mamie Smith. Da consequente migração do Mississipi para Chicago, surgem novas formas de pensar e daí seria imperativo referir Muddy Waters para nos permitirmos passar para as sonoridades de Charles Parker que conduziu o género a uma assumida categoria de fusão.
Este percurso que se difunde à escala global promove um consequente progresso que surge do seu núcleo, a partir de uma narrativa distópica, capaz de retirar da violenta marginalização uma verticalidade criativa única e prolongada no tempo, servindo várias gerações procedentes, que absorvem continuamente do jazz e do blues, a música e todo o seu ADN envolvido.
O jazz que hoje se produz e nos chega de várias formas às mãos e ouvidos reconstitui múltiplas experiências. Através do estudo, análise e da sua inevitável seleção, constitui-se uma ampla consciência sobre as suas ressonâncias que empregam sucessivamente novas sensações e valores. Independentemente do interveniente ou artista, os fluxos das suas deambulações geográficas e conceptuais adotam um espírito cada vez mais representativo, inclusivo, descomplexado e, por isso, também mais atento aos diferentes estímulos.
Estes gestos, erguidos por diferentes artistas de diferentes geografias e culturas, pensam e celebram diariamente o exercício criativo e artístico através da música que culturalmente nos afeta enquanto comunidade. Através da consequência das diásporas, responsáveis por ações desumanas, contrárias à natureza da nossa espécie, sobrevivem as culturas, os pensamentos e as ideias que se plasmam na contemporaneidade com força para se prolongar sobre as imprevisíveis leis do futuro. A sua constante emancipação é reflexo de um ego visceral, alimentado por princípios progressistas que tornam as doenças em algo infinitamente vital.
Assim, se o que é popular é o pão, o jazz para além do vinho, é a manifestação de um espírito absoluto. Uma linguagem universal. É o surrealismo. A catarse. Aquilo que dá para rir e para chorar. É tudo e, eventualmente, o nada, sendo, por isso, uma estrutura complexa de memórias afetivas e práticas inovadoras que, de diferentes formas, habita a elementaridade humana. É, segundo Carlos Paredes, o colorido do público, sobre o reforço das qualidades da música.
Aprender jazz é como aprender a falar.
Aprende-se, vai-se aprendendo.
Balbucia-se, imita-se, copia-se.
O vocabulário vai chegando, a gramática também.
A ortografia não tem nada a ver com o jazz. Os erros valem.
A caligrafia não é essencial.
Aprende-se jazz ao ouvir sinais sonoros específicos e à sua articulação ao receber uma tradição, muitas de viva voz.(José Duarte)