No meu trabalho como professora universitária, em cursos de Letras, conheci, em 2016, Danilo Santos Fernandes, aluno que, muito novo ainda, já se aventurava, com bons resultados, no desafio que é a escrita de poesia. O aluno da graduação, depois, tornou-se meu orientando na pós-graduação em Letras, no mestrado em que estudou a poesia da escritora brasileira contemporânea Ana Martins Marques. Ao acompanhar seu percurso, pude conferir também o desenvolvimento da escrita poética.

Logo depois da pandemia, Danilo publicou seu primeiro livro. Com o convite generoso para a escrita do prefácio, pude me deter, com cuidado, sobre seus versos. Transcrevo a seguir, considerações que fiz, no prefácio do livro Rasura-me ou te devoro1.

Rasura-me ou te devoro, como título do volume, impõe ao leitor um desafio. Nele está a alusão ao enigma proposto pela esfinge, criatura poderosa a bloquear o caminho, enigma, no entanto, ele mesmo já rasurado, já que decifra-me dá lugar ao imperativo que pede interferência e modificação – rasura-me. Já na epígrafe do livro, o desafio feito ao poeta, no poema de Drummond – trouxeste a chave? –, parece ser dirigido também ao leitor, que adentra o mundo das palavras, um tanto provocado. A provocação não é fortuita, já que ali está a poesia não mais em estado de dicionário, mas, a partir do momento em que foi apreendida nos movimentos do mundo, refeita – rasurada – por Danilo Santos Fernandes, a ser apreendida por outros olhos que, por sua vez, também a podem modificar.

O livro de estreia de Danilo guarda a poesia de um poeta já no domínio pleno da escrita. O ritmo preciso, a atenção à música das palavras, as imagens construídas sustentam o lirismo que, mesmo intenso, transparece por meio da sutileza. Nele, o poeta, sensível aos movimentos da vida, nomeia a poesia por meio do trabalho e da escuta empenhada, preocupando-se com a arquitetura dos versos. Assim, por meio do domínio da técnica e da atenção ao mundo e ao eu, o poeta constrói poemas que se constituem como acontecimentos, pequenas rupturas na casca dos dias, fazendo irromper o poético por meio do movimento sutil dos versos. O poeta está constantemente em busca da poesia, que eclode, no livro, como sóis acesos na noite imensa.

São muitos os enigmas que Danilo procura apreender, apontados nas diferentes partes do livro. Em Enigma da carne, por exemplo, aparece por baixo da pele o enigma que se apreende na vida-corpo, tocando questões como morte e tempo. Em O enigma da arte, o eu lírico percorre diferentes expressões artísticas, dialogando com várias obras e, nesse diálogo, incorporando aos versos seus aspectos mais proeminentes, num movimento de decifrar e de, ao mesmo tempo, rasurar. O enigma do céu é marcado pela mistura do eu e da paisagem, na procura de se apreender, fora de si, a própria subjetividade do humano, relação que também se estabelece entre o eu e o amado, em poemas de amor e de erotismo, em Enigma das enigmas.

A leitura atenta de alguns poemas do livro nos leva a perceber a delicadeza da técnica e, ao mesmo tempo, o irrompimento do lírico. No poema A morte reverbera na vida, por exemplo, em que o fim está, como som, no que vive, há o ritmo preciso dos versos curtos, no qual se sucedem as imagens, ligadas por rimas toantes sutis, numa construção paciente. Por meio dessa fatura, precisa, mas delicada, o lírico irrompe, capaz de inundar a vida inteira, como diz Drummond.

Em Nós outros, o corpo e a paisagem mostram-se ligados, numa época mais ingênua: o peito de luz/ ainda iluminava/ ruas e esgotos. No poema, em meios aos versos curtos, há a súbita aparição do decassílabo – tiranos, garras, garrafas quebradas – enfatizando, pela métrica, o assombro da opressão, amenizada, no entanto, pelo cantar dos olhos, numa luta entre o íntimo do ser e o mundo difícil. Esse decassílabo é exemplar da fatura poética cuidadosa de Danilo. Nele a sonoridade difícil que se estabelece por aliterações fala muito do mundo ameaçador, ameaça intensificada pelo crescendo sonoro do verso, em que, após o vocábulo tiranos, com o som nasal, aparece a vogal aberta a, num crescendo, aumentado pelo desdobrar de palavras: garras, com a inserção de uma sílaba, se torna garrafas.

No poema Não há céu que não se leia, há o embate entre vozes que, em versos longos, cada vez maiores, se alternam, num quase um diálogo. É poema, mais ainda do que os outros, para a voz alta. Nele se sucedem a lembrança das estrelas – o alto –, como oposição às doenças, aos desmandos, às guerras – o baixo. No entanto, aqui, como em outros poemas, Danilo não sucumbe ao tom esperançoso fácil.

Ao contrário, é lúcido, na atenção às dores do mundo, denunciando o difícil, intercalando-o, no entanto, com a luz dos astros, intercalação que acaba sintetizando a vida ambígua de difícil definição. Essa oscilação entre diferentes aspectos aparece em muitos níveis no poema. Pode ser percebida, por exemplo, na oscilação sonora e de sentido que se estabelece entre os vocábulos raros, ratos e galos, em que, mantendo-se as vogais, se vão alternando as consoantes, mudança que aproxima e afasta, ao mesmo tempo, vocábulos com sentido diferentes – raros é substituído pelo disfórico vocábulo ratos que, por sua vez, reverbera em galos que, pensamos, levariam a pensar em manhãs e renascimento, mas, ao contrário, cindem noites e trens e seus açoites surrando o silêncio de morte, numa intercalação de sentimentos entre a dor e a beleza.

Há também uma grande oposição no poema, marcada pelo tamanho dos versos. Longos, até mais da metade do texto, são curtos, ao final, em que deixam de seguir a linha argumentativa e voltam-se para a repetição que constrói uma espécie de acalanto:

e as ruelas em que se ama
e as flores que enfeitam a infância
e a grama onde se deita
e o corpo onde se deita
e o poema onde se deita
e a estrela, e a estrela, e a estrela

Porém, dentro do acalanto, que deveria trazer o apaziguamento, está a lembrança ainda que sutil de uma estrela que lembra o sofrimento a que uns chamam cruz, ambígua, porque também é conhecida por trazer esperança. O ir e vir entre uma coisa e outra está sintetizado no final do poema no trecho esperança rarefeita, já que sendo a esperança coisa pouco densa, que se desfaz, está sempre na iminência de dar lugar ao seu contrário.

Assim, na primeira parte do livro, se Tudo que resta são ruas/ cobertas por cadáveres que flutuam/ nas correntes de ar férreo dos dias difíceis em que vivemos, e se, ao mesmo tempo, Tudo que resta é esperança para sobreviver e resistir, o eu lírico sensível, nascido gauche com asas mancas, fruto da música e da dança que ditam o encontro dos pais, como afirma em um dos poemas, pede à ternura, mesmo com sua mão ferida, também rarefeita, no quase não existir, que cubra seus olhos, ouvidos e boca, uma vez mais, no descanso intermitente de quem muito vê – cubra a minha vida.

1 Fernandes, Danilo Santos. Rasura-me ou te devoro. São Paulo: Libertinagem, 2022.