O declínio da realidade exposto em traços gerais na primeira parte deste texto requer análises de caso para se diferenciar da vulgar repetição de mentiras comum na História. Mas se essas análises são parcelares e, por definição, temporárias, é igualmente possível interpretar o processo geral do declínio da realidade tal como ele sucede através dos diferentes contextos específicos. Se esse declínio é, como dissemos anteriormente, algo substancialmente diferente da distorção da verdade anteriormente praticada, então um modo de o compreender é através do exame do modo como vemos a realidade.

Se há traço definidor da realidade contemporânea distinto das experiências sociais registradas no passado, é o da normalização da tecnologia na vida quotidiana. Tanto a nível individual como a nível colectivo, tanto nos aspectos mais comuns como nos mais surpreendentes, a intersecção do domínio tecnológico (muitas vezes tomado como «a ciência») com a vida diária atravessa a realidade tal como a concebemos. Ora a expansão universal da tecnologia tornada normal trouxe consigo paradoxos e necessidade de encontrar novas formas de os gerir. Talvez o mais patente desses paradoxos seja a conversão do género utópico em distópico: progressivamente, sobretudo desde o século XIX, a tradição literária-teórica da Utopia foi sendo reconfigurada cada vez mais abertamente em função do potencial transformativo da tecnologia e, em simultâneo, foi adquirindo feições contrárias ao irenismo utópico. Claro está, mesmo a tradição utópica carregava em si sementes distópicas, como as experiências sociais baseadas nela vieram a revelar (a simples consideração da estruturação social rígida da cidade discursiva de Platão indicava-o, aliás).

Mas o essencial para o ponto que aqui fazemos é outro: à medida que o progresso científico, e na sua esteira técnico, foi reconfigurando cumulativamente o mundo tal como o conhecemos, as enormes esperanças investidas no conhecimento como fonte de realização dos ideais irénicos próprios das utopias foram sendo confrontadas com a insuficiência que esses poderosíssimos meios de transformação do real manifestavam para o recriaar consoante as expectativas iniciais. Sem motivo para espanto, a par da revolução industrial assistimos a uma literatura romântica na qual o tema do progresso distópico, da técnica geradora de problemas novos e não da resolução dos antigos, se afirma e adquire sentidos até então inimaginados – pensemos no Frankenstein. Desde o século XX, é mais fácil encontrar distopias do que utopias, além de que a sua relevância cultural é incomparavelmente maior (quem viveu o ano de 1984 lembra-se bem do que foi o orwellianismo associado à data). Significa isto que na reflexão sobre o topos (no caso, o lugar da vida social) a esperança deixou de ser apenas «sem-lugar» (o prefixo ‘u’ do Grego) e passou a ser dis-funcional; a predominância cultural das imagens, cenários, personagens, etc., de feição distópica exibe um esgotamento das esperanças utópicas tal como estas se definiram, fundadas no conhecimento e na ordem como fontes de progresso social.

Este excurso por aquilo que são, afinal, géneros literários, serve um propósito: argumentar que a transição de um imaginário utópico para um distópico (a ponto de por vezes a utopia e o anti-herói serem já mais atraentes para o público que os modelos clássicos) implica uma técnica específica para normalizar esse processo. Essa técnica é a linguagem do Risco, que veicula uma indústria (uma cultura, se se preferir dizer assim) de normalização do excesso tecnológico – se não pode ser utópico, pelo menos que se mitigue o seu distopismo. A «sociedade de risco», a «análise de risco», a «gestão do risco», termos de origem bem diversa, convergem neste ponto: menorizar o risco e (ou) a sua percepção. «Risco» recorde-se é um termo com um significado preciso, e bem moderno, oriundo da prática comercial (os seguros), e desenvolvido segundo o cânone da ciência moderna (a quantificação).

Risco é o cálculo das probabilidades de algo acontecer, o que podemos determinar a partir de um conjunto de casos de estudo anteriores. Sucede que nem sempre há essa série anterior de casos de estudo, pelo que a avaliação de risco fica severamente limitada. Mesmo sem acompanhar os detalhes técnicos, a maioria de nós é capaz de o perceber: há sempre algum risco específico associado a viver perto de uma central de energia nuclear. E esta (sub)categoria de Risco, é, desde o século XX, denominada incerteza, por referência a situações em que, apesar de não sermos completamente ignorantes sobre um dado problema, não detemos (e sabemos não deter) a informação necessária para levar a cabo uma análise de risco em sentido próprio (estimativa quantificada de hipóteses de verificação de algo). Sem esses dados, podemos apenas estimar um intervalo aproximado de probabilidade de ocorrência de eventos e a base para determinar o curso das medidas a tomar é muito menos definida.

Eventos recentes, como a pandemia (surpreendendo as análises de risco) ou a guerra na Ucrânia (menos surpreendente mas cujo risco foi ainda assim subestimado), ao evidenciaram os problemas inelutáveis para a avaliação de risco em situações marcadas pela agência humana e suas consequências, deveriam logicamente fazer desenvolver a estimativa de incertezas sobre as análises de risco. Contudo, isso não aconteceu. A indústria do risco segue inalterada – tanto por ser predominante como por não alterar as suas metodologias de modo relevante. Isto não resulta de distração ou de incompetência, tem sim a sua explicação na necessidade de mitigar a realidade anti-utópica que cresce com a experiência normalizada da tecnologia, resulta da necessidade de conformar a realidade da incerteza, ou melhor, de apresentar a incerteza cada vez mais sensível na realidade a um padrão bem estabelecido de normas e expectativas geríveis socialmente. O risco e a sua linguagem como forças antidistópicas, ainda que não utópicas (é um negócio, afinal).

A ser assim, a função social da linguagem do risco é participar na rejeição em bloco da realidade - da sua complexidade, da sua incerteza. Rejeição subtil mas por isso mesmo eficiente – a redução de todos os casos aos termos dos problemas que se conhece bem confere aos especialistas (cuja principal característica, como já foi notado, é não estarem de acordo – e ainda bem que assim é) uma aura distinta da do vulgo e tranquilizam este último na sua experiência quotidiana cada vez menos previsível, cada vez mais perturbada pela tecnologia e seus efeitos. Em sociedades marcadas pela intersecção tecnológica de todas as experiências humanas, e que cada vez mais são sociedades pós-humanas e pós-naturais, a normalização do estranho faz-se pela linguagem do risco e a rejeição do mais vital da realidade (a incerteza) faz-se pela ubiquidade dessa linguagem.