Um surpreendente encontro de duas mulheres nas entranhas de uma caverna mineira marcou a trajetória de cada uma e revolucionou a História da Ciência Mundial. Mais de 10 mil anos separavam essas mulheres e, ao se descobrirem, nos levaram as nossas origens mais remotas Uma precisava da outra para ganhar identidade e se revelar ao mundo. Enquanto a outra precisava da primeira para responder os questionamentos que a levaram a atravessar o Atlântico.

Uma delas é Luzia, mulher que viveu em Minas Gerais há aproximadamente 11500 anos. Pertencia a um grupo nômade, morreu com cerca de 20 anos e seu corpo foi encontrado em uma cavidade natural na caverna conhecida como Lapa Vermelha IV, nos arredores de Lagoa Santa. Coberta por mais de 12 metros de sedimentos depositados ao longo dos séculos, Luzia permanecia silenciada e anônima até ser encontrada pela equipe chefiada por outra mulher: Annette Laming Emperaire.

Annette era filha de diplomatas franceses e nasceu em São Petersburgo em 1917, poucos dias antes da Revolução Russa. Ao retornar com a família para a França, graduou-se em Filosofia e especializou-se em Arqueologia, Pré-História e estudo de pinturas rupestres. Durante a Segunda Guerra Mundial fez parte da Resistência, movimento que lutou contra a ocupação francesa pelos nazistas. Foi presa e levada a um campo de conscentração alemão, mas sobreviveu para encarar seus novos desafios. Além das suas atividades políticas, Annette seguia sua trajetória como arqueóloga. As descobertas sobre a antiguidade da ocupação humana na região de Lagoa Santa, iniciadas pelo naturalista dinamarquês Peter W. Lund no século XIX, a motivaram a pesquisar no Brasil.

Sabemos pouco da vida de Luzia até jazer na caverna mineira. Podemos apenas inferir a partir das pesquisas sobre o agrupamento humano do qual fazia parte. Luzia compunha um povo que ficou conhecido como Raça ou Homem de Lagoa Santa. Conviveu com a megafauna extinta composta por animais como tigres dente-de-sabre, preguiças e tatus gigantes, entretanto não caçava esses animais e nem sequer utilizava seus ossos e dentes como matéria prima para seus objetos. A sua alimentação era composta majoritariamente pela coleta de frutos e sementes (araticum, pequi, jatobá, cagaitera, gabiroba, araçá, coquinho licuri) e por alguma caça de pequenos e médios animais (pacas, veados, capivara, ouriço cacheiro, siriema, jacu, tamanduá, cotia, preá, mocó, porco do mato, teiú). Sabemos que seu povo não cultivava vegetais e não fabricava vasilhas de cerâmica. Seus instrumentos líticos eram simples, de pedra lascada. Pela sua idade, Luzia provavelmente teria filhos que compunham seu grupo de deslocamento de cerca de 25 pessoas.

As primeiras incursões de Annette no Brasil ocorreram em 1971, mas ganharam maior relevância quando se formou a Missão Franco-Brasileira patrocinada pela UNESCO, Ministério de Assuntos Estrangeiros da França e Museu Nacional. A Missão tinha como objetivos aprofundar conhecimentos levantados por Peter Lund, inventariar sítios arqueológicos e analisar pinturas rupestres buscando compreender seus significados. Annette e sua equipe exploraram dezenas de sítios arqueológicos na região de Lagoa Santa entre 1973 e 1976 e, em 1975, realizaram sua grande descoberta: a ossada daquela que posteriormente seria batizada de Luzia, um dos esqueletos humanos mais antigos das Américas.

Não sabemos como Luzia foi parar naquele lugar da caverna e a causa exata da sua morte. Possivelmente tenha sido provocada por um acidente ou ataque animal. Na época em que viveu o clima era diferente do atual, a seca e o frio tornavam a região de Lagoa Santa inóspita e pouco atrativa para fixação. O agrupamento de Luzia deveria estar só de passagem, o que explica o fato de não ter sido enterrada segundo o ritual de seu povo. Seu corpo caiu ou foi arremessado e deixado para trás na solidão da caverna.

Annette não teve tempo de realizar grandes publicações sobre sua descoberta, pois faleceu em 1977. Assim como Luzia, teve sua vida interrompida por um trágico acidente: faleceu devido a um vazamento de gás no banheiro de um Hotel em Curitiba. Uma mulher que sobreviveu às câmaras de gás construídas pela crueldade dos nazistas, sucumbiu aspirando o gás produzido pela irresponsabilidade brasileira. Mesmo falecendo tão precocemente, tornou-se um marco na Arqueologia Brasileira, pois além da descoberta que mudou o olhar científico para a pré-história americana, Annette foi pioneira nas datações radiocarbônicas para sítios arqueológicos, estudos modernos dos sambaquis e pinturas rupestres. Influenciou e marcou a formação das futuras gerações de arqueólogos brasileiros.

Luzia tinha uma estrutura craniana diferente dos povos indígenas encontrados pelos portugueses no Brasil. Por isso, os estudos de Anatomia Comparada levaram muitos cientistas a acreditarem que ela era descendente de aborígines australianos e africanos. Peter Lund já sinalizava essas características morfológicas diferenciadas em seus estudos das ossadas humanas encontradas na Lapa do Sumidouro em Minas Gerais em meados do século XIX. A partir daí, surgiram várias teorias para explicar a origem, a data e a forma como Luzia e seu povo chegaram à América do Sul. Mas até o “efeito Luzia” em 1998, os estudos sul-americanos foram ignorados pela comunidade científica mundial.

Após realizar uma das mais abrangentes escavações arqueológicas na Lapa Vermelha IV, encontrar Luzia e falecer abruptamente, Annette e sua equipe não puderam ampliar seus estudos e fazer publicações aprofundadas a respeito dos vestígios que encontraram. Em 1979 foram publicados os primeiros resultados dessa escavação, mas conflitos entre os franceses e brasileiros da Missão chefiada por Annette geraram divergências sobre quem detinha os direitos de estudo sobre o rico material coletado.

Após ser resgatada por Annette numa fenda da caverna, mais de 11 mil anos após a sua morte, Luzia foi novamente esquecida. Desta vez em uma das gavetas do acervo do Museu Nacional do Rio de Janeiro. Ela não era uma exceção. Desde que Peter Lund revelou ao mundo as riquezas fósseis das cavernas mineiras, várias missões científicas estiveram na região coletando um número significativo de fósseis primitivos. Porém, esse material encontrava-se em gavetas de museus pelo mundo e pelo Brasil, sem que a comunidade científica se atentasse para sua importância e potencialidades de estudo. Até a década de 1990, nenhuma ossada tinha sido sequer datada por Carbono 14. Luzia era mais uma esquecida numa dessas gavetas museológicas.

Annette, assim como Luzia, foi calada e esquecida. Era uma mulher que sempre lutou por seus ideais e sonhos, que se impôs numa comunidade científica majoritariamente masculina, que não temia nazistas, preconceitos ou adversidades. Porém, no momento de sua maior descoberta científica, não teve a oportunidade de receber o reconhecimento merecido pelo seu trabalho. Trouxe Luzia à luz e saiu de cena.

Luzia só se tornou conhecida quando foi objeto de estudo de pesquisadores da USP que a resgataram no acervo do Museu Nacional. A reconstituição de sua face teve repercussão internacional na década de 90 e as teorias aventadas por Peter Lund e defendidas por importantes pesquisadores brasileiros entraram na pauta de debates científicos. Era o “Efeito Luzia”. Novamente discutiam-se as teses de Lund de que o povo de Luzia ocupou a América muito antes do que se supunha, coexistindo com a megafauna primitiva extinta. Defendia-se que Luzia pertencia a um grupo distinto da raça mongólica que predominou em momentos mais tardios da história humana no continente e que deu orígem aos atuais indígenas americanos. No entanto, a Ciência está em constante desenvolvimento e o surgimento da tecnologia de extração de DNA dos fósseis trouxe nova luz a essa antiga polêmica científica. A arqueogenética demonstrou que Luzia tinha as mesmas características genéticas dos indígenas americanos e, portanto, a mesma origem mongólica. Hoje se defende que as diferenças morfológicas de Luzia e seu povo tenham ocorrido devido à adaptação ao meio.

Desde sempre o ser humano se pergunta de onde veio. O encontro de Luzia e Annette nos possibilitou caminhar um pouco mais na busca dessa e outras respostas, ajudando-nos a conhecer melhor nossas origens mais remotas. A América apresentou Luzia como seu símbolo originário, assim como a África tem a Lucy e a Europa, o Neandertal. Luzia esperou mais de 11 mil anos até se deixar revelar para uma mulher que a acolheria e entenderia: a sensível e guerreira Annette Laming Emperaire.