Preâmbulo

Eu fiquei quase dois anos dentro de casa, isolado, com medo de ser contagiado pelo coronavírus, morando com meus pais quando fomos acometidos pela necessidade do isolamento social. Naquele momento, o meu maior pesadelo era ser contaminado e, consequentemente, passar o vírus para eles. Foram longos meses em que tive minha vida resumida a acordar, fazer pedidos de suprimentos pela internet, trabalhar pela tela do computador e ajustar meu corpo a uma cadeira desconfortável, o que me fazia lembrar cenas da peça Dias Felizes do Samuel Beckett, na qual a personagem Winnie fica presa em um buraco de areia que aumenta a cada dia, tendo que lidar apenas com o que pode alcançar e tendo sua mobilidade reduzida a cada dia, até chegar o momento que sua única forma de comunicação é a movimentação dos olhos.

Em 2020, não havia uma previsão para que o isolamento social fosse cessado por meio de vacinas, só restava a esperança de vindouros dias felizes, no início de 2020, diante de tamanha tragédia mundial. Por isso, foi inevitável me apegar aos pensamentos de Deleuze e Guattari sobre o devir para poder existir e reexistir naquela situação. Então, quando anunciaram a possibilidade de uma vacina, a esperança foi revitalizada dentro de mim. Foi um alívio, com muitas lágrimas derramadas, quando meus pais puderam tomar a primeira dose - um sopro de vida. Em seguida, na minha vez de ser imunizado, só me lembro que deixei o ponto de vacinação e pus para fora todo o meu choro contido durante meses e meses, uma emoção incontrolável, misto de dor e felicidade. Já era noite e eu pensava nos amigos que tinham partido antes da vacina e na possibilidade de almejarem um futuro.

Logo que tomei a segunda dose da imunização contra o coronavírus, me permiti sair de casa usando máscara e o que fosse necessário para evitar a contaminação.
Em 2021, tentei planejar uma viagem, “em segurança”, com uma amiga, mas tudo foi por água abaixo por causa de um desentendimento, daqueles que os amigos vivenciam quando estão todos à flor da pele, não deu certo e tive que buscar outras opções, vislumbrar outros roteiros e me deleitar planejando uma viagem sozinho. Para mim, o planejamento de uma viagem é algo extraordinário, um evento que me faz sentir borboletas no estômago.

Com duas doses da vacina, minha intenção era ir até Recife, alugar um carro e visitar alguns amigos no Nordeste. No entanto, a oscilação das tarifas aéreas, algo que nunca compreenderei, me sinalizou que ir até Natal, no Rio Grande do Norte, seria a opção mais viável financeiramente. E, naquele momento, não desejava ir a um lugar com muita gente, eu queria apenas poder viajar e ficar quietinho com minha máscara de proteção (parece até surreal dizer isso agora) e como o destino escolhido nem sempre é aquilo que cabe no bolso - voilá!

Os “voos” que saem da cidade em que moro são bem limitados, temos apenas um por dia, durante a semana apenas, mas temos - isso que importa. Embora Natal não fosse a minha opção mais fascinante para uma viagem “pós-isolamento* social, minha curiosidade me fez passar horas em sites de buscas, analisando mapas, distâncias etc. Se desembarcar na capital potiguar era viável, eu fui “fuçar” o que poderia haver ao redor e que pudesse me proporcionar uma prazerosa sensação de viajar “com máscara N93”.

Sobre e sob o sol de Galinhos

Em pesquisas internéticas, eu observei que havia um lugar chamado Galinhos, vendido por muitas empresas de turismo como destino bate e volta, daqueles que a gente fica hospedado num polo turístico, acorda às 5 horas da manhã, pega uma van, sacoleja por algumas horas, visita o lugar por duas horas e volta para o hotel no fim do dia. E foi assim, sem pressa e sem sacolejar numa van, que cheguei até lá, depois de alugar um carro na capital do Rio Grande do Norte e seguir, metodicamente, muitas dicas lidas em blogs e em sítios online.

Galinhos é uma península ao norte do estado do Rio Grande do Norte, cujo acesso turístico é feito, majoritariamente, por uma estrada e depois uma embarcação. De carro, a possibilidade de dirigir até o estacionamento que dá acesso ao trapiche é um passeio deslumbrante, no qual podemos avistar os cataventos da energia eólica (se são saudáveis para a comunidade, não sei lhes dizer, pois recentemente eu li uma matéria de que também podem ser uma forma de dizimar comunidades ancestrais).

Para minha estada em Galinhos, eu não pensei em economizar, já que há aplicativos que nos permitem parcelar a hospedagem a perder de vista. Assim, ao chegar na pousada escolhida, me deparei com uma solenidade extraordinária da proprietária. A ansiedade me consumia, meus pensamentos estavam voltados para o desfrute daquilo que estava na minha memória ou projeção, alimentado pelas fotos disponíveis na internet.

Passada a fase do pagamento e instruções, a dona da pousada me entregou a chave do chalé. Então, fui transitando por um emaranhado de cores, texturas e harmonia até chegar na porta do tão almejado quarto, cujo nome acho que era Vênus e, para minha surpresa, abrir aquela porta foi surpreendente, para além da expectativa - um lugar que parecia não prometer muito, era equipado com uma cama excelente, lençóis de altíssima qualidade, vaporizador com aromatizante e todas as amenidades de um hotel caro de cidade cosmopolita.

Já não me lembro mais o nome da proprietária da pousada, mas ela me disse que havia construído aqueles quartos para sua família, um espaço de veraneio e que veio a se tornar uma pousada na sequência. Seu marido veio trabalhar no Brasil e ela veio junto e ali escolheram ter um lugar para passar as férias e feriados. Acho que os filhos cresceram e ela o transformou numa belíssima pousada. Esse foi o meu primeiro contato com aquela península, que se tornava mais deslumbrante a cada hora. Cada minuto naquele lugar foi se tornando uma experiência mágica, mística talvez - um deep breath depois de tanto tempo em isolamento social.

Entre montanhas de sal e ostras frescas

Afora a pousada, eu havia procurado por um passeio de “voadeira” (canoa com motor), no qual o “comandante” levava uma seleção de frutas, parava em pontos estratégicos, colhia ostras frescas, ancorava sua embarcação, montava uma rede no meio da água, uma mesa com as frutas, acendia uma churrasqueira, fazia um belo camarão na brasa e ainda uma sobremesa.

Antes da viagem, eu havia tentado o contato com um senhor que fazia o tal passeio, mas ele não tinha disponibilidade e acabou me passando diversos outros contatos para eu agendar a “tour”. A maioria parecia não querer vender a comodidade para apenas uma pessoa, até que consegui falar com o Gustavo. Viajar sozinho, às vezes, pode ser uma limitação, não apenas financeira, mas de possibilidades. Inicialmente, fiquei receoso, pois ele agendou a data do passeio e não exigiu nenhum “sinal” (pagamento parcial adiantado). Na minha cabeça, eu teria apenas que imaginar como teria sido o passeio, já que não havia garantias de nenhuma das partes.

No entanto, apesar da minha insegurança e ansiedade, como combinando, no meu segundo dia por lá, ele chegou com sua voadeira de nome Asa Branca, que na verdade é rosa, estampando um sorriso largo e pontualidade quase que britânica.

Ufa! O passeio tão esperado, as ostras frescas e a liberdade de um viajante solitário se tornariam realidade. O comandante da voadeira demonstrava um anseio para explicar” tim tim por tim” de cada nó que navegávamos. Falava sobre os pássaros, peixes, crustáceos, a vegetação e exacerbava todo o conhecimento de quem nasceu e cresceu por ali. Então, minha armadura de viajante experiente e solitário, que almejava respirar sem preocupações com um vírus, foi se derretendo com suas palavras, o sol escaldante e a paisagem surpreendente.

Aos poucos, começamos a fazer trocas sobre nossas vidas e o meu casco resistente foi sendo diluído pela doçura (na verdade era tudo bem salgado, já que estávamos em uma região conhecida pelo extrativismo de sal marinho) daquele nativo da península, cujo sonho era trazer o filho de volta da cidade grande para continuar seu legado, potencializar seu engajamento com questões políticas e ambientais e de seu passado como charreteiro.

A leveza, a paisagem, a conversa, a hospitalidade, foram me guiando e quando percebi, já estava posando para fotos que ele propôs que eu tirasse, aquelas embaixo de placas, com efeitos e poses que jamais irei postar em alguma rede social, mas manterei guardadas como parte da minha história.

Durante a navegação, passamos pelo Diamante Branco, uma salina que fica uma parte da península, onde tateei as pepitas de sal pela primeira vez. Em seguida, a tão esperada coleta de ostras frescas, a parada para o churrasco de camarões e um pedaço de praia só para mim. Parecia surreal estar vivendo aquela experiência depois de quase dois anos de claustro. Foi assim que Gustavo, o comandante, se transformou em meu doutor “sabe tudo” daquele lugar, para quem eu mandava mensagens pedindo indicações e informações.

Nos dias subsequentes, eu comecei a sentir a topofilia da península, a rotina de quem mora lá, o poder do vento, da maré e minha pequenez na finitude da vida. Parecia que depois do jantar todos se recolhiam, havia apenas os pescadores fazendo a manutenção de seus barcos, os gatinhos de rua, o relevo dos paralelepípedos, o barulho das ondas, o cheiro daquilo que estava por vir e o brilho da lua.

No terceiro dia, eu resolvi fazer um passeio de quadriciclo, achando seria como andar de bicicleta ou pilotar uma motocicleta de pequeno porte. Ledo engano! Eu havia contratado o serviço, mas não entendia nada daquele equipamento de transporte. O proprietário veio me encontrar próximo à pousada onde estava hospedado e, para começo de conversa, tive que pilotar no meio dos transeuntes - foi quando percebi que era mais complicado que eu pudesse imaginar, após quase bater em um muro ou pôr em risco a vida das pessoas que estavam por perto. Eu estava seguindo o guia e o proprietário do quadriciclo, que pilotava uma motocicleta e, de repente, para e me pergunta: Quer desistir? Eu poderia ter desistido de fazer aquele passeio sobre quatro rodas, mas eu precisava me permitir àquela aventura e foi quando começamos a chegar nas dunas, em um fim de tarde cujo visual parecia fundo de tela de computador. Segui firme e fui até o fim do que tinha sido programado, parando próximo a um farol para apreciar o pôr do sol. Voltei feliz para os lençóis da pousada.

E antes de finalizar este texto e por me considerar um glutão, cujo hobby é cozinhar, preciso dizer que a comida em Galinhos é um evento à parte, embora haja poucas opções para um turista ávido pela culinária. eu me surpreendi muito, não apenas pela qualidade, a despretensiosidade, a indiferença ao que é gourmet, como também pela hospitalidade recebida em todos os estabelecimentos comerciais.

Assim, enquanto eu não vivo uma experiência sob o sol da Toscana, eu compartilho com vocês as minhas memórias vividas sob o sol de Galinhos.