Nos anos 2000, o diretor Brian Singer trouxe a franquia X-men para os cinemas e a usou como uma metáfora política, a luta que os mutantes apresentavam no filme por seus direitos ecoava o conflito real que homossexuais travavam por reconhecimento no contexto da época. O que é pouco conhecido do público é que usar situações fictícias para debater os problemas sociais nunca foi exclusividade dessa franquia, durante toda sua história os super-heróis foram usados para falar do mal do mundo real.

As primeiras histórias de combatentes mascarados como o Mandrakke e o Fantasma apresentavam um tom leve e descontraído, herdado das antigas ficções pulp (literatura barata sem ambição artística) mas mesmo nelas já era possível ver algum contorno político, como em histórias no qual o Fantasma enfrentava vilões com aparência semelhante à de Josef Stalin. Ainda assim os quadrinhos tinham um certo apelo limitado. A criação do Superman mudou isso, o icônico herói fez imediatamente um grande sucesso mudando os quadrinhos. Ainda que pouco lembrado atualmente, o homem de Kripton possuía mensagem social, Kal El não era um americano nativo, mas um alienígena (metáfora para um estrangeiro) que adotava o estilo de vida americano, os Estados Unidos do começo do século 20 era um destino frequente de imigrantes do velho mundo querendo vida nova, adotar o estilo americano era o caminho necessário para conseguir sucesso nessa terra. E ninguém encarnou melhor esse ideal do que o Homem do Amanhã.

Superman foi criado no período do New Deal, momento em que toda a sociedade sofria com a crise economia, a revolta era geral na sociedade, o presidente Franklin Roosevelt atacava os chamados “Monarquistas Econômicos” que acumularam poder demais. Superman encarnou esse ideal lutando contra empresários corruptos para proteger o cidadão comum. Desigualdade não era seu único inimigo enfrentando maridos que agrediam a esposa.

A popularidade do Kriptoniano inspirou a chegada de outros super-heróis como flash, lanterna verde e Batman. Começava a chamada Era de Ouro dos quadrinhos. Entre os super-heróis dessa primeira geração um dos destaques foi o Capitão Marvel, hoje conhecido como Shazam. O Capitão, codinome de Billy Batson, era uma criança órfã e pobre sofrendo de poliomielite, numa época em que a doença era um grande mal para a população, mas que um dia realizava o sonho de todo jovem, encontrar um Mago e poder deixar todas as dificuldades do mundo para trás ao se tornar um super-herói. Billy Batson logo se tornou o herói mais popular da época vendendo mais quadrinhos do que seus rivais Batman e Superman, ganhando várias revistas derivadas para seus colegas de equipe, inclusive para seu melhor amigo que era deficiente físico, e uma adaptação para o cinema.

A popularidade dos novos super-heróis e dos quadrinhos em geral despertou enorme polêmica sobre sua influência na sociedade, muitos discutiam sobre o quão positivo era o impacto dos quadrinhos na juventude americana. Um dos que defendiam a nova mídia era o psicólogo William Moulton Marston. No começo dos anos 40, Marston defendeu o potencial educativo dos quadrinhos para as próximas gerações. Os argumentos do psicólogo chamaram a atenção dos editores que o convocaram para criar seu próprio personagem.

Marston era um militante feminista convicto, defensor das relações poli-afetivas que vivia um relacionamento com duas mulheres ao mesmo tempo, ele acreditava que um dia o mundo se tornaria pacífico com uma sociedade matriarcal, seu novo personagem representava todos os seus ideais: A Mulher-Maravilha. Marston a criou para ensinar que se podia resolver os problemas através do amor e não da violência. Até o ponto fraco da heroína, ser amarrada por um homem, era uma obvia metáfora para o machismo.

A chegada da Segunda Guerra descortinou o lado social dos Super-heróis, todos eles foram chamados para lutar contra as forças do eixo, como se estivessem convocando o povo a fazer o mesmo na vida real. Todos os principais heróis possuíam vilões nazistas ou do império do Japão. Mesmo o Principe Valente que vivia na idade média, teve que enfrentar os Magiares, metáfora para os fascistas. O Fantasma lutou contra os Japoneses nas Selva de Bengala na Índia. Batman em sua adaptação para o cinema lutou contra um cientista maluco japonês. E o Capitão América estreio esbofeteando Hitler na capa da revista, momento que foi referenciado no cinema em seu filme do século seguinte.

O começo da Guerra fria não foi tão positivo para os quadrinhos, a paranoia da época combinada com o moralismo fez a popularidade dos heróis diminuir, críticos como o psicólogo Fredric Whertam, despertaram o medo na sociedade com suas acusações de serem uma má influência sobre os jovens. Com a preocupação crescente, um sistema de censura foi instaurado nos quadrinhos, e várias revistas foram canceladas. A era de ouro dos heróis acabou. Entretanto esse período de decadência seria curto.

A mudança cultural na segunda metade do século trouxe novamente interesse pelo gênero. Uma nova empresa, a Marvel, estava despontando e com ela seus dois principais autores, Stan Lee e Jack Kirby. A estratégia da editora era criar personagens mais humanos com dramas sociais com os quais o público podia se identificar. O demolidor era cego, o homem aranha pobre, o quarteto fantástico tinha problemas familiares, o homem de ferro sofria de alcoolismo.

Logo, surgiu a ideia de apresentar uma equipe que servisse para discutir o crescente movimento dos direitos civis e as preocupações do público negro. Assim apareceu os X-men, a principal relação dentro da equipe, o conflito entre Magneto e o Professor X veio da vida real, o mestre do magnetismo era uma analogia de Malcolm X, o líder dos X-men de Marthin Luther King. Mesmo o fato de magneto ser um judeu, era para relacionar a luta dos mutantes e, portanto, dos negros, com a luta que os judeus travaram no passado.

O sucesso dos personagens criados pela Marvel fez Stan Lee se tornar o rosto da editora, entretanto seu colega Jack Kirby não foi tão reconhecido o que o levou a sair da empresa para criar outros personagens. Kirby se mudou para a rival DC Comics onde escreveu e desenhou vários quadrinhos icônicos para a empresa, entre as obras do quadrinista estavam Sandman (não o que é atualmente famoso) sobre um menino órfão maltratado pelos tios (a mesma história de fundo de Harry Potter décadas depois) que era resgatado dessa vida por um super-herói que o fazia seu assistente. OMAC, em que era representado um futuro distópico semelhante ao do livro 1984, com direito a um satélite chamado Irmão Olho que vigiava a terra, clara referência ao Big Brother do livro. Etrigan, homenagem aos antigos clássicos de terror.

Entre as obras mais ambiciosas de Kirby na DC provavelmente esteve Kamandi, o último garoto na terra, na revista o mundo teria sido destruído por uma guerra nuclear os humanos por consequência perdido sua inteligência agindo como animais, as criaturas selvagens por outro lado se tornaram conscientes e agora dominam o mundo. O quadrinista usou a peculiar mitologia para criticar a forma como o ser humano trata os animais, Kamandi por ser igual aos outros humanos, exceto pela inteligência que é muito maior, acaba sendo usado pelos bichos da mesma forma que tratamos os animais. Entretanto a obra prima de Kirby foi seu quadrinho O Quarto mundo metáfora do conflito social que acontecia entre as gerações nos anos 70, a revista mostrava os velhos deuses das mitologias falecendo e novos panteões de deuses tomando seu lugar, do mesmo modo que os jovens tomavam o espaço dos mais velhos no mundo real.

Kirby não era o único usando os quadrinhos desse modo na época. Os anos setenta além da contracultura enfrentaram também a guerra do Vietnam que fez muitos questionar o modo americano de ser. Para refletir isso foi criado o personagem do Pacificador, uma crítica ao ideal patriótico da mesma forma que o Capitão América era uma apologia. Um dos traumas do Pacificador era que seu pai tinha sido um líder em um campo de concentração, que levantava a questão do quanto a política americana se assemelhava ao de seus antigos oponentes.

Durante os anos 80 com a chegada da reação conservadora no ocidente, vários autores ficaram descontentes com os novos líderes. Essa frustação foi posta no papel, quadrinhos ingleses como V de Vingança e Juiz Dredd mostravam uma sociedade ditatorial, analogamente a como enxergavam o governo de Margareth Thatcher.

No novo século, os heróis continuaram como espelho do mundo real, a grande saga da Marvel chamada Guerra Civil, em que os heróis lutavam entre si por diferenças ideológicas, foi uma metáfora da polemica guerra ao terror do presidente Bush. Assim como na realidade muitos sentiam que estavam perdendo liberdade devido a vigilância excessiva, na história alguns dos supers achavam que tinham que se submeter ao governo para evitar riscos, enquanto outros temiam o poder que os políticos teriam sobre os heróis. Entretanto aquele que foi provavelmente o maior impacto dos heróis na cultura americana foi feito num programa de radio na metade dos anos 40. Na primeira metade do século 20 a Klu Klux Klan havia se reconstruído como uma organização legal que pagava impostos e influenciava na política nacional. Muitos não aprovavam a influência do grupo racista na cultura, entre eles estava o ativista dos direitos humanos Stetson Kennedy, quando jovem sua babá havia sido assassinada pela Klan o que causou no ativista um rancor profundo pela organização. Ele então decidiu já adulto se infiltrar no grupo e descobrir mais sobre seu funcionamento.

Armado do conhecimento decidiu divulgá-la para o mundo. Para fazê-lo entrou em contato com um canal de rádio que transmitia o programa semanal do Superman. Após um acordo com os produtores Kennedy divulgou as informações que foram usadas no roteiro do show. Em alguns episódios Superman enfrentou a sociedade secreta no arco Klan da Cruz de Fogo o episódio gerou polêmica, mas acabou reduzindo a popularidade da organização e diminuiu a adesão a mesma. O que ajudou a levá-la ao esquecimento.

Heróis foram uma marca expressiva na cultura consumista americana desde seu aparecimento e acabaram se tornando uma forma de lidar de modo leve com seus problemas sociais, o que ajuda a entender seus sucesso e prosperidade ao longo de quase um século de existência.