Invariavelmente, em aulas e palestras, me fazem perguntas como estas: o que faz com que um texto escrito seja considerado literário? O que distingue um texto literário de um não literário? Por que obras de Flaubert, Dostoiévski, Machado de Assis, Guimarães Rosa e Clarice Lispector são consideradas literárias e livros de Paulo Coelho, Dan Brown e John Grismann não? Essas perguntas podem ser resumidas numa só: mas o que é mesmo literatura?

Essa é uma daquelas perguntas que não são fáceis de responder, pois a conceituação do que é literário varia muito, até mesmo entre estudiosos do tema. A professora Leyla Perrone-Moysés, na apresentação de seu livro Mutações da literatura no século XXI, é clara nesse sentido, ao afirmar que:

Fala-se em literatura como se todos soubessem do que se trata. Mas na verdade não existe um conceito de literatura, mas acepções que variam de uma época a outra.

Não há uma resposta simples e objetiva para aquelas indagações, pois não há um único critério que permita classificar um texto como literatura. O que faz com que um texto seja considerado literário não são aspectos apenas imanentes, isto é, relativos apenas a obra em si mesma. Existem também fatores institucionais que se levam em conta na classificação de uma obra como sendo literatura. Por esse critério, considera-se literário aquilo que é legitimado e proclamado como tal pela crítica, pela universidade, pelos intelectuais, pela escola. Como o conceito de literário varia de época para época e de sociedade para sociedade, o que é hoje legitimado por essas instâncias como literário não significa que sempre tenha sido assim. Autores como Edgar Allan Poe, Flaubert e Balzac, hoje expoentes da literatura ocidental, tiveram, cada um em sua época, sua obra depreciada e não reconhecida como literária.

Para orientar aos que me perguntam, tenho preferido discutir os critérios que se usam para alçar uma obra à categoria do literário e, por extensão, excluir outras, além de apelar para o bom senso e bom gosto daqueles que me perguntam.

Numa perspectiva que leva em conta a imanência do texto, foca-se na obra em si mesma e abstraem-se aspectos exteriores a ela, aquilo transcende a obra, como autor, época, gênero, etc. Aqueles que adotam o critério imanentista postulam que textos literários se caracterizam pela literariedade, ou seja, que existiriam certas características, especialmente linguísticas, que permitiriam classificar um texto como literário.

Consideram que a literatura apresenta uma linguagem especial, que se afasta da chamada linguagem ordinária. A linguagem literária seria, por assim dizer, uma linguagem que vai além do conteúdo informacional, aquilo que se diz, voltando-se para a forma como se diz, explorando seus aspectos sensíveis como a sonoridade e a forma de se combinarem palavras e frases. Em síntese: a linguagem literária seria uma linguagem que se volta para si mesma, que enfatiza a expressão, ou seja, o como se diz.

O linguista Roman Jakobson, num texto que se tornou clássico, Linguística e poética, chamou esse uso da linguagem de função poética. Como o próprio nome indica, ela é mais facilmente identificada na poesia, pois nesse gênero de texto a expressão é bastante enfatizada mediante recursos sonoros e rítmicos, como nestes versos de Fernando Pessoa:

Mas em torno à tarde se entorna
A atordoar o ar que arde
Que a eterna tarde já não torna!

Embora menos frequente, recursos sonoros são também explorados em textos em prosa como nessa passagem de Clarice Lispector:

A vigília da barata era vida vivendo, a minha própria vida vigilante se vivendo.

A função poética, apesar do nome, não é exclusiva de textos literários, podendo ser observada em outra esferas, como na publicidade, em canções e ditados populares que também exploram a sonoridade da expressão linguística. Evidentemente, não podemos reduzir a linguagem literária apenas a aspectos relativos à sonoridade da expressão linguística, pois ela explora também aspectos sintáticos e semânticos, combinando palavras de maneiras diferentes do usual e explorando novos significados para as palavras, ou seja, a linguagem literária faz uso também das chamadas figuras de retórica. Quando Machado de Assis, em Dom Casmurro, diz que na missa:

Havia homens e mulheres, velhos e moços, sedas e chitas, e provavelmente olhos feios e belos, mas eu não vi uns nem outros, as palavras sedas e chitas ganham novos significados, revelando que entre as pessoas presentes havia ricos e pobres.

Assim como o destaque à sonoridade dos textos, as formas inusuais de combinar palavras e de explorar novos sentidos para elas, não são monopólio da literatura. Isso revela que classificar um texto como literário apenas a partir do uso especial da linguagem não é critério suficiente para afirmar que um texto pertence à literatura, o que nos obriga a não ficar restrito a um único critério.

Quando nos apoiamos em fatores institucionais para legitimar uma obra como literária, o critério é da ordem da transcendência, pois levamos em conta fatores exteriores a ela, ou seja, saímos do texto, mas sem desconsiderá-lo, recorrendo a elementos contextuais. Com base nesse critério, consideramos literatura aquilo que as fontes legitimadoras definem como tal. Mas quem são essas fontes que têm autoridade e legitimidade para dizer que uma obra é ou não literária? São, basicamente, a academia, a crítica literária e a intelectualidade. A escola, embora não seja propriamente uma fonte legitimadora, tem papel relevante em legitimar o que é literário, pois afiança e reverbera a legitimação, exercendo papel importante na formação de leitores literários e na divulgação e preservação de um cânone.

Há ainda quem procure resolver a questão do que é literatura afirmando que ela é do domínio da arte, que o texto literário se diferencia dos demais por ser um texto artístico, que, portanto, tem por finalidade a fruição, o prazer estético. Essa definição, no entanto, nos leva a uma discussão mais ampla: mas o que, afinal, é arte?