A casa era pequenina, cor-de-rosa, e tinha trepadeiras em todos os cantos. As escadas eram de pedra, com vista para o enorme cajueiro. O jardim, visto da varanda, era enorme, verde e denso. Os pinheiros cheiravam a Jazz e as flores eram de todas as cores. A Gabi e o Bruno eram um casal, e também bons amigos, que gostavam de dar e de receber pessoas do mundo inteiro. Gostavam de partilhar histórias, ideias, sonhos. E gostavam de Portugal.

Apresentaram-nos um amigo português, o Jaime, de sessenta anos, que está no Brasil há mais de dez e já viveu pelo mundo inteiro. Pelo mundo e pelas conversas, pelas pequenas grandes alegrias. Estudou economia e hotelaria, dedicando-se finalmente à gastronomia. Cozinha há décadas, como forma de amar os outros. Serviu-nos pastéis de bacalhau do Minho, acompanhados com um bom vinho do Porto.

O Jaime tem dois restaurantes portugueses, um em Recife e outro em Olinda, o lugar onde perguntamos se seria possível existir arte demasiada. Músicos e pintores, poetas e artesãos. Pincéis e tintas de todas as cores. Quase que ficámos intimidados. Sentou-nos à mesa para conversar horas sem fim, sem fotografias, sem preconceitos, sem países nem fronteiras. Em vez de construir muros maiores, pôs mais uns quantos lugares na mesa. Para trocar ideias, para contar histórias, para encontrar novos tons e culturas.

Durante dias e dias, não conseguimos escrever sobre Olinda. Recordámos, somente, o Jazz e o Fado ao fundo, os sorrisos encontrados. Lembrámo-nos das casas, das cores das tintas nos nossos braços, das paisagens. Recordámos ainda alguns poemas de Sophia e pequenas memórias de Agustina Bessa-Luís. Quem sabe por referirem a indelével timidez de alma, tudo aquilo que não pode ser por vezes revelado.

Mais tarde, e talvez com outros olhos, de distância e de alegria, terminámos uma carta antiga, num caderno preto, de capa oleada. Nele estão palavras que procuram eternizar cada uma das cores, cada uma das conversas, cada pormenor daquela casa, junto ao mar. Nele estão frutos espalhados pelo chão, das trepadeiras ao cajueiro. «Nele o tempo foi tão vivo», que as palavras não sãosuficientes para aquilo que se viveu. Nele os dias e os silêncios têm voz, têm lágrimas de várias cores. Quem sabe porque a Arte que vimos fora demasiada.

Ouvimos também uma música que falava da estrada do sol. Ouvimo-la várias vezes. Durante todo esse tempo, permanecemos e soubemos parar, trocar conversas sem fim, e perceber que as cores da natureza têm de facto a força das histórias, e das memórias também. Durante todo esse tempo, soubemos também fazer silêncio. Nem sempre foi fácil. Cruzavam-se inúmeras vozes, pegadas de pessoas que também paravam e ficavam a conversar. Cruzámo-nos com algumas apenas, e com outras caminhámos pela areia, até ao nascer do sol.

Enquanto aumentava a claridade, nasciam também memórias sem fim, trocas de sonhos, de ideias nossas, dos outros, de estarmos juntos assim. No meio de tantas vozes e palavras, quisemos sempre recordar algumas. Recordar com muita força. Porque o que fica vale a pena ser lembrado, tantas vezes quantas as páginas dos cadernos, das gargalhadas, das amizades, enfim.

Recordamos com força a paz da Nicole, que tinha duas filhas pequenas, sozinha, e viajava vendendo pulseiras, num tapete que pousava em inúmeros lugares. Sempre com um sorriso e, no meio de tanta força, uma conversa de paz. Uma energia que apetecia e pedia para parar, sentar. Recordamos também a paz do Chico, dos seus postais gastosas a brilhar, porque já ninguém troca cartas, porque já ninguém escreve postais. Com alegria quisemos contar que ainda se faz, que vale a pena escrever, vale a pena enviar imagens e palavras.

Recordamos ainda, quem sabe, os pincéis do Luís, que além de artesão era pintor, que tinha brincos com casca de coco e pinturas sem fim. Sem vergonhas e no meio da alegria, emprestou-nos as tintas e as cores. Pintámos a mesa e os braços. Pintámos a vida e o tempo. Que foi tão forte, mesmo ali.

Mais tarde, as palavras eram insuficientes, eram inúmeras as listas de pessoas e tantas as histórias que nem podiam sequer ser contadas. Percebemos então, com o tal caminho até ao sol, numa falésia alta e bonita, que nem todos os encontros têm lugar no papel.Continuámos a escrever alguns, a rir de outros e a eternizar mais ainda. Só que na vista da falésia, no mar ao longe e nas pocinhas da praia, a natureza deu sentido a cada uma das histórias.

Nesse dia, estávamos dentro do mar mesmo, estávamos bem longe da espuma e no lugar onde as ondas são espelhos e remamos para fazer carreirinhas. Nesse dia, a chuva foi muito forte. Era uma chuva tropical, imensa, intensa. E talvez a mais indelével memória, fora de facto a chuva, porque cantou e contou por nós as tantas histórias. Cantou o silêncio e a paz da Nicole, teve as cores das pinturas do Luís e ainda quem sabe, enviou as tão desejadas palavras do Chico para lá... Lá bem longe, onde a chuva cai com tanta força.

Uma chuva que caminha até ao sol, para só mais tarde adormecer. E despedir-se mesmo ali, quem sabe para voltar. Um regresso à tão bonita chuva, uma chuva no mar.