No google, o Graal regista cerca de 16 200 000 resultados (0,48 segundos), no site dos Repositórios Científicos da FCT, 346… deslizando da literatura para a reflexão e análise académicas.

A diversidade habita a lista com esse nome: desde os cálices que assim se designam às ONGs e aos grupos de investigação, religiosos, esotéricos, sociedades e empresas (especialmente, laboratórios de medicamentos, empresas de tecnologia biomédica, clínicas), medicamentos para a estética e para doenças mais letais (cancro, etc.) que o consagram no nome, de movimentos espiritualistas até redes rodoviárias, de livros explorando o seu universo às rotas que o turismo explora, de desporto de combate a processo de iniciação e a estratégia económica ou, em geral, de inovação… mundos tão heterogéneos que quase apetece falar em universos paralelos, não fosse ele tão transversal e elusivo.

Para o conhecermos, vamos cercando esse objecto mutante com perguntas que, em conjunto com as respostas, cartografam a cultura europeia na metamorfose da sua aventura inacabada (Zygmunt Baumann). Observemos como elas desenham algumas rotas irresistíveis.

O que é o Graal?

Aí está: em rigor, não sabemos, embora a resposta mais imediata tenda a ser: um cálice.

Tem origem, viagem e metamorfose ficcionais, com etimologias hipotéticas e mescladas (francesa, occitana, catalã, latina…), oscila entre mito (“Um nada que é tudo”, como diz Fernando Pessoa), símbolo (Gilbert Durand) e metáfora. É um herói de mil faces para usar o feliz título de Joseph Campbell): um cálice, um prato (Chrétien de Troyes), uma pedra (Eschenbach), um livro (Robert de Boron, Jean-Michel Angebert), uma imagem arquetípica (Emma Jung), a experiência de iniciação-transformação individual, associado ao feminino, mas também ao masculino, ao cristianismo e às heresias (Catarismo), entre sagrado e profano, navegando a ambiguidade.

O corpus literário que o representa tem sido diversamente dividido, por épocas, grupos de autores, subtemas (personagens ou sequência de aventuras), critérios genológicos e adaptações regionais (pelo centro europeu e pelas penínsulas itálica e ibérica). O mais abrangente Ciclo da Demanda, ou dividido entre Ciclo da Vulgata (desenvolvido por etapas), do Lancelote-Graal (escrito entre 1210 e 1230) e o Ciclo da Post-Vulgata (escrito entre 1230-1240), p. ex., vinculado à Matéria da Bretanha (distinta da de França e da de Roma), mas deslizando para outras, uma vez que a própria lenda arturiana é moldura metamórfica cuja mais antiga referência é a anónima Historia Brittonum (anterior ao século XI), onde surge Artur como líder bretão que A Historia Regum Britanniae (século XII), de Geoffroy de Monmouth, retomará e desenvolverá, favorecendo a sua côterie, como é o caso de Merlim (A Vita Merlini, de meados do século XII), com profecias de origem diversa relativas à Bretanha, e da Távola Redonda (Brut, de Wace), etc..

Se folhearmos as Letras e as Artes, constataremos a sua pregnância e o modo como atrai outros temas e áreas disciplinares.

Comecemos a viagem…

Surge num conto inacabado (O Conto do Graal, de Chrétien de Troyes), em 1190, mas vai-se transmutando através de sucessivas ficções pelas penas de Wolfram von Eschenbach, Robert de Boron e uma lista interminável dos que o ‘concluiram’, continuaram, ampliaram, lhe imaginaram rotas e aventuras e o entrelaçaram com outros imaginários e objectos (cristianizando-o, aristocratizando-o, ‘templarizando-o’, etc.) até agora.

A perscrutação das suas origens anteriores ao primeiro relato literário de Chrétien de Troyes é matéria controversa e conduz-nos a incursões em diversos imaginários: na mitologia celta (Roger Sherman Loomis, Alfred Nutt e Jessie Weston) até ao mágico Caldeirão d’O Dagda, à gesta dos Tuatha Dé Danann nas “ilhas do norte do mundo”, nos relatos referentes a Lúcifer e à esmeralda que deixa cair (daí à Alquimia, com Hermes Trimegisto e a sua Tábua) nas pinturas murais do século XII de igrejas nos Pirinéus catalães (Joseph Goering), na construção da imagem de Edessa ou no túmulo de Jesus (Daniel Scavone, 1999, 2003), na sua relação com o Sudário (Daniel Scavone assinala em 1996 a hipótese de identificação entre ambos a partir da narrativa de um MS georgiano do séc. V, segundo o qual José de Arimateira teria recolhido o sangue de Jesus que escorria de seu corpo crucificado no próprio Sudário), no chifre do deus do rio Aqueloo descrito nas Metamorfoses (Goulven Peron, 2016).

Ilumina velhos manuscritos (de autoria anónima, como a procissão do Graal de Perceval ou Le Conte du Graal, 1330, de Chrétien de Troyes, ou Lancelot and the Holy Grail, 1405-1407, ou identificada, como King Arthur's knights, gathered at the Round Table to celebrate the Pentecost, c. 1475, de Évrard d'Espinques), em ritualística celebração da Távola Redonda e dos seus…

Surge em ilustrações de William Dyce (Piety: The Knights of the Round Table about to Depart in Quest of the Holy Grail, 1849) ou de Arthur Rackham ("How at the Castle of Corbin a Maiden Bare in the Sangreal and Foretold the Achievements of Galahad", na edição de The Romance of King Arthur and His Knights of the Round Table, 1917, de Alfred W. Pollard).

É pintado por autores como Frederick Sandys (King Pelles Daughter, 1861), Arthur Hughes (Sir Galahad - the Quest of the Holy Grail, 1874), Dante Gabriel Charles Rossetti (The Damsel of the Sanct Grail, 1874), Wilhelm Hauschild (nos murais do Castelo de Neuschwanstein, 1878), Edwin Austin Abbey (1890), Edward Burne-Jones (The Dream of Launcelot at the Chapel of the San Graal, 1895-1896), Sigismund Goetze (The Vision Of Sir Percivale's Sister "Streamed Thro' My Cell A Cold And Silver Beam, And Down The Long Beam Stole The Holy Grail, Rose-Red With Beatings In It, As If Alive", 1902), Pinckney Marcius-Simons (Parsifal and the Knights of the Holy Grail: Scenes from Act I, c. 1902), Frederick Judd Waugh (The Knight of the Holy Grail, 1912), and so on… Em tapeçarias, como na série Holy Grail or San Graal tapestries (1890) baseadas em Le Morte d'Arthur (1485), de Sir Thomas Malory, com figuras de Edward Burne-Jones, William Morris (heráldica) e John Henry Dearle (fundos e vegetação).

É tema de música medieval como: El cuento del Grial de Chrétien de Troyes (c.1150-c.1183) (Persavaus. Atressi con Persavaus, de Rigaud de Berbezilh, Blancaflor. Danse & estampie, de um Manuscrit du Roi, La guerra. Ahi!, Amours, de Conon de Béthune, Tristán. Lamento di Tristano, de ms. em Londres), El Rey Arturo y la gran historia del Grial de Robert de Boron (c.1190-1210) (Perceval. D’Amors (Lamento de Perceval) e Merlín, de mss. Anónimos, La Cuarta cruzada. Seigneurs, sachiez qui, de Thibault de Champagne, Palestina. Palästinalied., de Walther von der Vogelweide e Wolfram von Eschenbach), De Perceval a Parzival (San Miguel el Alto, Cantiga de Toledo, Tristan e Isolda. Ich lobe ein wip. Der Tanhuser, Lapis exilis, de Neidhart von Reuental) El significado del Grial de Hélinand de Froidmont (c.1160-1230) (Lanzarote y Ginebra, do Le Manuscrit du Roi, La búsqueda del Santo Grial, de Wolfram von Eschenbach, La muerte de Arturo. Chanterai por mon coraige, de Guiot de Dijon, Pantocrátor. Dregz de natura, de Matfré Ermengau, Chronicon. Karitas habundat, de Hildegard von Bingen), Virtut apurar no’m fretura sola. La Corona de Aragón (c.1123-1458) (Lilzáhira. Los set gotxs recomptarem, de Llibre Vermell, Tirant lo Blanch. Ung lanceman a tout, de Montecasino, El Siti Perillós. Sola vos (Contrafacta), do Cancionero de Estúñiga).

Brilha de protagonismo com Richard Wagner (Parsifal, 1882), evocando a lenda do “Schwanritter” (Cavaleiro do Cisne), do Graal e das narrações lendárias da vida do rei Heinrich der Vogler: Parsifal e seu filho, Lohengrin, o príncipe do Santo Graal, a que Baudelaire reconhece caráter sagrado e misterioso. E enlaça o compositor e Luis II da Baviera, o "Rei Cisne", "Rei de Conto de Fadas" ou o "único rei verdadeiro deste século [XIX]" (Paul Verlaine), num jogo de encantamento (L’enchanteur et le Roi des ombres - Richard Wagner, Louis II de Bavière, 1973, de Ollivier Blandine, Parsifal et l'enchanteur: Louis II et Wagner, 2011, de Nicola Montenz) sob o signo da magia operática arquitectónica e cenograficamente cristalizada nos seus “castelos dos contos de fadas” (Castelo de Hohenschwangau, perto do Schwansee/Lago dos Cisnes, Palácio de Linderhof, com as armas do cavaleiro Lohengrin e a "Gruta de Vénus", Castelo de Neuschwanstein, o “Castelo da Cinderela”, símbolo dos estúdios Walt Disney, Palácio de Herrenchiemsee, etc.).

E foi atravessando os géneros musicais com autores como Horatio Parker (1915), Arthur Farwell (1925), Peter Racine Fricker (1953) e outros, até ao premiado hip-hop/rap Holy Grail de Jay-Z (2013).

No cinema, o Santo Graal brilha desde a sua estreia em versão muda Parsifal (1904), de Edwin S. Porter, e The Light in the Dark (1922). Passa por O Cálice de Prata (1954), de Victor Saville, e O Código Da Vinci (2006), de Ron Howard, Lancelot du Lac (1974), de Robert Bresson, Excalibur (1981), John Boorman, The Fisher King (1991), de Terry Gilliam, até aos cómicos Monty Python and the Holy Grail (1975), adaptado ao teatro por Spamalot (2004), e ao icónico Indiana Jones e a Última Cruzada (1989), de Steven Spielberg. Atravessa séries como Knightfall (2017), The Grand Tour (4ª série) ou episódios delas, como "Legend of the Holy Rose" (na 5ª temporada, 1989) de MacGyver, " Grail " (1994) da Babylon 5 , da 10ª temporada de Stargate SG-1 "The Quest" (2006), da 1ª temporada de Knightfall (2017), 17º episódio de Little Witch Academia ("Amanda O'Neill and the Holy Grail"), 12º episódio da 9ª temporada do programa americano The Office . Motiva videogames: Gabriel Knight 3: Blood of the Sacred, Blood of the Damned (1999), Pretty Guardian Sailor Moon (2013), Persona 5 (2016), Assassin's Creed, Fate…

Passou por um revivalismo romântico e foi marcado por autores como Tennyson (nos seus Idílios e no poema "Sir Galahad"), James Russell Lowell (v. poema "A Visão de Sir Launfal") e T. S. Eliot (The Waste Land), Hemingway e Fitzgerald, Fernando Pessoa… habita a letra de Madison Cawein (1913), John Cowper Powys (A Glastonbury, 1932), Charles Williams (War in Heaven,1930, e poesia), Thomas B. Costain (O Cálice de Prata, 1952), Nelson DeMille (The Quest, 1975), Michael Moorcock (The War Hound and the World's Pain, 1981), Marion Zimmer Bradley (The Mists of Avalon, 1983), Rainer M. Schröder (trilogia Die Bruderschaft vom Heiligen Gral), Jack Vance (trilogia Lyonesse), Richard Gilliam, Martin H. Greenberg e Edward E. Kramer (Grails: Quests of the Dawn, 1994), Rosalind Miles (Child of the Holy Grail, 2000), Umberto Eco (Baudolino, 2000), Bernard Cornwell (The Grail Quest, 2000–2012)… passa por policiais “culturais” como O Fogo Invisível (2018), de Javier Sierra, é presença incontornável na lista dos mistérios da História (p. ex., a de Sérgio Pereira Couto) até às teorias da conspiração que, com Richard Leigh e Michael Baigent (The Holy Blood and the Holy Graal, 1982), J. R. Church (Guardians of the Grail… and the men who plan to rule the world!, 1989), Dan Brown (O Código Da Vinci, 2003) e Lynn Sholes e Joe Moore (A Conspiração do Graal, 2005), espoletaram uma onda de publicações que inundou as livrarias.

Enfim, no seu protagonismo e diversidade, impossíveis de elencar, o Graal justifica afirmações como a de Quinn Hargitai: “The treasure isn’t the cup, but the stories we have crafted around it throughout time”.

Transversal a todas as suas hipóteses: o brilho, o resplendor, a magia transcendente… e a hipótese de imortalidade a que aspira o homem, assim como a sua experiência de iniciação-transformação.

Ápice de uma consagração, lugar de encontro, fonte de vida e de imortalidade… é luminoso, numinoso, encandeando-nos, encantando-nos, fascinante pela intangibilidade, como aquela máquina do mundo d’ Os Lusíadas, sucessivamente reconfigurada por Fernando Pessoa (“O Infante”, 1934), Carlos Drummond de Andrade (em Claro Enigma, 1951) e António Gedeão (na Máquina de fogo, 1961), figura principal de uma cena que Almada Negreiros compôs no âmbito da série das "figuras e alegorias do pensamento e da literatura universal e portuguesa" (1961) e sob a qual entramos na Faculdade de Letras de Lisboa, assim sugerida como templo de conhecimento e da sua transmissão.

Na centralidade da sua representação pictórica por Évrard d’Espinques (c. 1475) ou na ilustração do século XV atribuída a Walter Map, essa semelhança é inquestionável: uma espécie de etéreo/a âmago/máquina do mundo e da sua realização. À volta, como os astros em volta do Sol, os 12 cavaleiros e o Rei Artur evocam, além dos seus homólogos da última ceia crística, o anterior zodíaco celeste na roda do tempo (dia+noite, meses do ano, signos do Zodíaco): do ímpeto aventureiro de Áries-Gawain, passando pelo Touro-Heitor, pai adotivo de Arthur, Gémeos-Lionel e Bors (ou Balin e Balan), Câncer-Nave de Argos comandada por Galahad (ou Kay), Leão-Lancelot, Virgem-Guinevere-Morgan-le-Fay-Dama do Lago (ou Tristão), Libra, a Pomba anunciadora e iluminadora da Procissão do Graal, Escorpião-Mordred, Sagitário-Artur e Capricórnio-Merlin (ou o Rei Pellinore, pai de Parsifal), até ao Aquário-Phoenix-Parsifal, símbolo da ressurreição, e Peixes-Guinevere (ou Pelles, Rei Pescador). As correspondências zodiacais variam com os autores, mas subsiste a ideia desse ciclo da vida representando o cosmos à escala humana.

Eis, ao fundo, esse Graal que Fernando Pessoa convoca santificado (“Santo Graal”) e “Encoberto” n’ “O Desejado”, d’“Símbolos” da Mensagem, e que diz ter sido trazido por D. Filipa de Lencastre, “Princesa do Santo Gr[a]al,/Humano ventre do Império,/Madrinha de Portugal!”, evocando a aliança na base da Ínclita Geração, reforçando a velha ideia de que Portugal é o “Porto do Graal”, como sugere o selo oficial da doação de Tomar aos Templários em sinal rodado que Lima de Freitas acolhe e explora na obra do esse título (de 2006), perscrutando “a riqueza ocultada da tradição mítico-espiritual portuguesa” (seu subtítulo), matéria, também, de Manuel J. Gandra, no seu ensaio Portugal, Terra Lúcida. Porto do Graal.

O euro exibe as suas insígnias na face nacional portuguesa, desafiando à busca graálica. Nas moedas de 1, 2 e 5 cêntimos, reconhece-se o primeiro selo real de 1134, baseado na assinatura de D. Teresa, “Tarasia Regina”, com as letras por entre os braços de uma cruz cristã ao meio, sobreposta às pétalas de uma rosa, e evoca-se a abóbada da igreja do convento de Cristo, que replica, quer a moldura floral, quer a rosa-cruz. As de 10, 20 e 50 cêntimos exibem o selo real de 1142 do documento de doação da cidade de Tomar, a capital templária; as moedas de 1 e de 2 euro portuguesas exibem os selos reais de 1144. Na finisterra europeia que é Portugal, nas nossas mãos, as moedas reflectem os selos régios fundacionais e a rosa-cruz templária, representando os céus e as abóbadas dos templos aspirando a eles…iconografia dos sonhos que nos constituíram… pois “As nações todas são mistérios”, como nos diz Fernando Pessoa (“D Tareja”, num d’ “Os Castelos” da Mensagem).