Já aqui não está quem falou!

Sedução onírica do Verbo que se faz carne ao correr da pena, da escrita líquida solidificada pelo desejo de ser lido e reescrito, amado, querido, por ti leitor: o parente mais próximo das personagens.

O romance fala do eu que é já o outro dele mesmo, que é também o leitor que se apropria do que antes lhe era estranho. Ao jeito Ricoeuriano, o romance faz a corte à alteridade que jaz em cada um de nós; a esse chão aparente, mas que possui portas e puxadores rodáveis, ao alcance das nossas mãos-olhos. É a dimensão do sonho ancorado que se desprende sem medos dos sentidos proibidos, que faz do mundo a sua casa.

Que se sinta ao ler que tudo o que temos é o que somos!

Pergunto-me se os livros têm respiração própria? Se as personagens se sentem sepultadas em vida? Entre páginas e páginas comprimidas…se renascem sempre que cada um de nós, leitor, abre esse livro? Se assim for, o leitor é um deus, tem o poder de dar vida e de matar personagens; tal como o escritor que as faz nascer quando as nomeia ou as mata, quando põe um ponto final na história pessoal delas! Maravilhoso. Adoro esta metáfora de papel.

Será que podemos afirmar, indo de encontro às propostas de Nelson Goodman (1995), que os factos são construídos tanto quanto o são as ficções e que estas podem ser informativas e formativas?

Isto quer dizer que o mundo ficcional nos pode dar a ler informações acerca dos nossos comportamentos, na medida em que através dele podemos experimentar afinidades de olhares, encontros com atitudes de outros sujeitos?

A ficção é fascinante porque nos oferece a oportunidade de exercer livremente as nossas faculdades, quer para percebermos o mundo, quer para reconstruirmos o nosso passado.

A ficção é lúdica tal como as peças de Lego que nos permitem efectuar e estruturar diferentes experiências de construção, mas este facto pode conduzir-nos a uma ambiguidade; a uma textura híbrida no momento presente, como nos relembra Eco: “Mas se a actividade narrativa está tão estreitamente ligada à nossa vida quotidiana, não poderá acontecer interpretarmos a vida como ficção e introduzirmos elementos ficcionais quando interpretamos a realidade?” (Eco, 1995).

Ao lermos ou relermos histórias de vida diferentes da nossa, ainda que animadas por personagens, manifestam-se, em nós, leitores, interrogações, juízos de valor e comparações e perguntas em que o advérbio de comparação surge: – Ele faz como eu?

Então, em última instância, é a nossa maneira de ver a vida que está em causa. Por isso e como sublinha Ricoeur (1991) “a narração nunca é eticamente neutra, mostra-se como o primeiro laboratório do julgamento moral”.

Trata-se de uma feliz imagem ricoeuriana, que nos permite perceber que o racional e o sensível se sobrepôem neste processo: o objectivo subjectiviza-se e o subjectivo objectiviza-se, na e pela linguagem. Deste modo, a arte literária afigura-se, por excelência, como palco laboratorial para experiências de pensamento onde variações imaginativas proliferam.

São essas experiências de pensamento, suscitadas pela ficção, com todas as implicações éticas, que contribuem para o exame de si mesmo no quotidiano.

Tal exercício, conduz a uma sabedoria prática que começa no acto de escrever, de narrar, que começa por atingir o próprio escritor, já que este é o seu primeiríssimo leitor; á medida que escreve, que se escreve, lê-se, interpreta-se e avalia-se a si mesmo como um Outro. E neste sentido, poderemos sentir que os livros são longas cartas que o escritor escreve a si próprio e toda a literatura é um grande acto epistemográfico...