Lembro da primeira vez que assisti uma partida de futebol. Tinha 8 anos de idade. Meu avô me “sequestrou”, disse para meus pais que me levaria para tomar sorvete, tomei e fui “batizada” dentro do templo do futebol mundial.

O primeiro Fla-Flu na década de 80 em plena ditadura ninguém esquece! Lá estava eu, lá estava ela, vestida em todas as cores, gritos de êxtase, paixão, ela estava lá nas arquibancadas, na antiga geral do Estádio Jornalista Mário Filho (Maracanã), a Democracia estava lá dentro e os militares lá fora.

Enquanto eu torcia pelo Flamengo e assistia meu avô chorar com a derrota do “-nense”, na cidade vizinha do meu Rio de Janeiro, em São Paulo, um grupo de jogadores entrariam para a história, não apenas por levarem multidões aos estádios, mas por lutarem pelos direitos de todos: fossem jogadores ou torcedores.

Entravam em campo, não só com o corpo, mas com a alma e a mente. Não jogavam para garantir apenas uma vitória dentro de um campo específico, mas para uma nação, além da corinthiana.

Walter Casagrande Jr, era um deles.

O ex-jogador do Corinthians, atualmente comentarista esportivo, fala conosco sobre o que foi a Democracia Corinthiana, o Esporte pela Democracia e sobre o momento frágil que a democracia brasileira vive.

O que foi a Democracia Corinthiana? Quando foi o pontapé inicial?

A Democracia Corinthiana começou a ser elaborada no final de 1981 quando o sociólogo Adilson Monteiro Alves se tornou o vice-presidente de futebol do Sport Club Corinthians Paulista. Ele iniciou um processo diferente no relacionamento entre o clube e os jogadores. E em março de 1982 a Democracia começou a tomar forma, era mais visível. O grupo começou a ter mais liberdade e fomos nos unindo mais.

O Adilson começou a se aproximar mais de nós jogadores. Lembro do dia que estávamos num debate na PUC (Pontifícia Universidade Católica, em São Paulo) em 1982, debatíamos a democracia e falávamos sobre o Corinthians e do nosso movimento democrático dentro do clube, quando terminamos nossos relatos, o jornalista Juca Kfouri disse: “isso é uma democracia de corinthiano” e ai o Washington de Olivetto (publicitário), pegou essa “fala” do Juca e montou o slogan: Democracia Corinthiana e começamos a jogar com essa frase escrita nas nossas camisas.

A gente começou a perceber o interesse social, político de cada jogador. Era muito claro que alguns jogadores não tinham tanta liberdade, eles queriam participar mais, porém o futebol era muito paternalista, machista, autoritário, eles ficavam “meio de lado”, durante a Democracia Corinthiana o pessoal começou a se soltar, ter mais liberdade, no meu caso especificamente.

Eu tinha apenas 18 anos, mas joguei na base do Corinthians na época da ditadura, final dos anos 70, na época do Vicente Matheus (presidente do Corinthians 1959 a 1991) me destaquei muito no juvenil do time, mas também tive muitos atritos porque eu era contra a ditadura e o Corinthians seguia as regras do governo, que era militar.

O time estava jogando bem e participávamos de várias atividades políticas. Resistimos a pressão do Governo que ligava toda semana para o clube pedindo para que parassem aquele movimento, para tirarem o nome Democracia Corinthiana da camisa, para não colocar a frase “dia 15 vote”, que era um incentivo para as pessoas votarem.

Fazia quase 20 anos que as pessoas não tinham o direito do voto no Brasil, e naquela época começou uma campanha para eleição direta para o governo. As pessoas estavam com o pé atrás, com medo de votar, questionavam se aquilo não era uma “armadilha” ou se era de verdade, e nós entrávamos em campo com a frase na camisa para estimular a campanha pelo voto.

A Democracia Corinthiana se formou dessa maneira: comigo, Sócrates,WS´cladimir e o Adilson, mas todos participavam, cada um de uma maneira, não eram obrigados, alguns não se interessavam, outros não entendiam muito o que estava acontecendo, alguns tinham um pouco de medo, mas o grupo estava ali, unido e forte.

Qual foi o maior gol marcado pela Democracia Corinthiana?

Podem ser dois gols? Um foi no campo esportivo e o outro no politico. A final de 82 contra o São Paulo foi o golaço necessário. Foi o ano que os generais (o Governo militar) pressionavam o clube por causa do nosso movimento, forte pressão da polícia, um ano de muito atrito, e nós, jogadores, dependíamos daquele título do campeonato para estabelecer a Democracia Corinthiana. Esse foi o golaço dentro do campo.

O golaço político foi o movimento das Diretas Já, quando fizemos parte, junto com outros grandes nomes que também lutavam pela democracia no Brasil num evento histórico no Vale do Anhangabaú, em São Paulo.

Foi a principal participação histórica de jogadores de futebol dentro do campo político no Brasil dentro de todo aquele cenário da ditadura brasileira.

Qual foi o pior pênalti que a Democracia Corinthiana sofreu?

Teve uma derrota. Foi o Adilson (vice-presidente do Corinthians) ter perdido a eleição para a presidência em 1985. Naquele momento havia dois candidatos. Um representava a ala da democracia com o Adilson e o outro candidato Roberto Pásqual, representava a ditadura militar. Eles deram um golpe na gente. Tinha votos de pessoas que nem vivas estavam mais! Perder aquela eleição foi o maior golpe e ali acabou a Democracia Corinthiana. A gente sofria vários ataques, mas tirávamos "de letra”, mas ter perdido aquela eleição…

Se você pudesse classificar a Democracia Corinthiana numa função dentro do campo, ela seria atacante, zagueiro, meio de campo, lateral ou goleiro?

Acho que a Democracia Corinthiana foi atacante! Não é porque eu sou atacante, não! A gente atacava mesmo! Não tinha meio termo.

Quando a ideologia e o grupo estavam formados, a gente tinha na cabeça e nos pés que a gente não podia jogar apenas no meio-campo porque os ataques vinham de todos os lados e de maneiras bem sujas, nós tínhamos de ser atacantes de verdade, dar a “cara para bater”, corríamos o tempo todo, mesmo com o risco de sofrer quedas, consequências ruins, a gente não se preocupava com isso.

Casagrande, você acha que a democracia brasileira está “perdendo de goleada”?

Está sendo uma derrota momentânea, mas dolorida. A gente tem visto tanta coisa errada… Existem vários movimentos, grupos, pessoas se mobilizando contra tudo isso que está acontecendo de errado e o resultado ainda é muito pequeno.

O Brasil está tomando uma goleada em todos os sentidos, principalmente no meio ambiente que está sendo destruído. A gente tem se mobilizado, mas é uma tristeza muito grande ver o que está acontecendo com o nosso meio ambiente e com os nossos povos indígenas.

O combate ao covid-19 está sendo um outro desastre no Brasil, mais de 160.000 mortes e mesmo assim as pessoas saem nas ruas, vão para a praia, bares, não colaboram… E ai me pergunto: O que fazer para que essas pessoas mudem de idéia? Eles estão vendo uma outra realidade, que não é a verdadeira: o caos. O Brasil está vivendo um caos.

Nós temos visto coisas além de surreais nesse período da pandemia, é inacreditável que as pessoas aceitem isso tudo.

Por que você acha que o Brasil chegou nessa situação?

Teve o golpe contra a Dilma e várias pessoas “compraram” a imagem negativa do Governo dela e do Lula. As fake news foram essenciais para deturpar toda a situação. E ai tudo rompeu completamente, acredito que foi ai que tomamos o verdadeiro golpe. Todo mundo sabia que iria acontecer, o resultado? A gente tem visto hoje.

O Brasil está vivendo o pior momento que eu já vivi, depois da época da ditadura militar.

O que é e como surgiu a idéia do Esporte pela Democracia?

Pensei em criar esse grupo quando aconteceu a morte do garoto João Pedro, de 14 anos, no Rio de Janeiro, morto pela policia e depois o assassinato do George Floyd nos EUA. Essas duas mortes me deram uma revolta muito grande, principalmente por causa da questão racial. Eu quis criar um grupo naquele momento para defender a democracia brasileira e também para ser um grupo anti-racista, de verdade.

O grupo surgiu, inicialmente, para ser um manifesto anti-racista. Era o que estava acontecendo naquele momento, a gente não podia ficar calado vendo tudo aquilo acontecendo, a gente tinha de mostrar a nossa cara e foi assim que surgiu o grupo Esporte pela Democracia.

O Esporte pela Democracia “durou” apenas um dia e meio, porque na metade do segundo dia jornalistas, atores, músicos, cineastas, advogados, aderiram e a formação do grupo cresceu, abriu espaços para todas as áreas o fortalecendo mais ainda em relação àquilo que estava acontecendo no mundo, principalmente nas questões raciais no Brasil e em relação aos ataques à democracia.

Sobre a liberdade de expressão dos atletas. Alguns foram proibidos pelas confederações de expressar suas opiniões, o caso mais recente é o da jogadora de vôlei de praia Carol Solberg. Como você, que viveu a luta pela democracia em plena ditadura vê uma situação como essa nos dias de hoje?

Acho que isso é uma censura. A Carol foi denunciada pela procuradoria do Superior Tribunal de Justiça Desportiva (STJD) por dizer Fora, Bolsonaro, no final de uma entrevista para um canal de tv, depois que ela ganhou a medalha de bronze em uma partida da etapa do Circuito Brasileiro de Vôlei de Praia.

E se não tivesse acontecido uma mobilização grande com vários grupos se manifestando, apoiando e a favor da Carol, ela pegaria (e eu não tenho dúvida), uma suspensão de 6, 7 jogos e ainda receberia uma outra penalidade máxima: uma multa de R$100.000, mas houve um engajamento da sociedade muito forte em prol da democracia, da liberdade de expressão que existe ainda, por isso que houve “apenas” uma censura.

A sociedade esportiva democrática não aceita essa solução do “problema”, nós não aceitamos censura para a Carol e nem para ninguém.

Você acha que os atletas precisam se unir mais?

Claro! Isso é uma coisa que espero há muito tempo. Faz uns dois, três anos que eu cobro uma participação maior dos jogadores de futebol, em tudo.

Penso o seguinte: Nós vivemos numa democracia, eles não são obrigados a se manifestarem, mas está acontecendo tanta coisa… Bem, eles não querem se manifestar politicamente, ok, mas a questão racial no mundo está muito forte, o preconceito, o racismo, a homofobia, está muito grande no cenário mundial e principalmente aqui no Brasil, é nesse sentido que acho que os jogadores de futebol deveriam usar a voz forte que eles tem, como o Hamilton (Lewis Hamilton, piloto de F1).

Eu hoje classifico o Hamilton como o esportista com mais noção da importância da voz que ele tem, dos movimentos, das vitórias, e ele tem usado tudo isso para mostrar o que está acontecendo de errado no mundo, não temos nenhuma voz como essa no futebol, acho isso um absurdo.

Eu venho de uma Democracia Corinthiana onde a gente usava muito bem a liberdade de expressão e hoje eu vejo que eles não usam para nada, eu fico um pouco indignado com isso.

Você vê situações semelhantes da época da ditadura ocorrendo agora?

Não vejo semelhanças não, sabe por que? Porque na época da ditadura o inimigo era tão grande e forte que a gente estava focado num movimento que ajudasse a re-democratização do país, a gente não estava olhando para os lados, para as quedas, a gente estava querendo que a ditadura militar acabasse. Ponto. Naquela época a gente tinha mais pessoas ao nosso lado no final das décadas de 70 e início de 80, a grande parte do país, da população, queria a democracia.

A nossa luta era difícil, complicada, perigosa, mas a gente tinha uma retarguarda grande das pessoas. Hoje está muito dividido. O lado democrático do país, das pessoas que estão tentando defender a democracia está sem uma retarguarda.

Eu me posiciono todas às vezes da maneira que acho que deve ser, me manifesto em todas as coisas erradas que acontecem no país desde quando começou esse novo governo, mas eu não me sinto com a retarguarda segura como eu me sentia antes, lá traz. Por que? Porque me sinto mais frágil do que eu me sentia nos anos 80 quando eu lutava pela democracia. Tem várias pessoas que se manifestam como eu, o problema é que estamos isolados, é uma posição muito frágil.

As manifestações que acontecem em grupos ou movimentos são fortes, mas quando é mais direta, individual, não é tão segura como era antes, apesar de, por exemplo, eu me manifestei no caso Robinho e 90% da população me apoiou. O jogador foi condenado a nove anos de prisão por violência sexual na Itália, tem direito de recorrer? Sim, mas nesse momento ele é condenado da justiça italiana. Tem um frase da música Bola de Meia, Bola de Gude, do Milton Nascimento, que diz exatamente o que eu penso: ‘Não posso aceitar sossegado qualquer sacanagem como coisa normal’.

Eu não tenho como não me expor, porque eu venho de uma história de luta pela democracia desde do final dos anos 70, automaticamente as pessoas sempre esperam algo de mim em relação a um posicionamento público, e eu não me sinto pressionado com isso, porque isso faz parte da minha formação, da minha personalidade, eu não faço nada forçado, eu faço tudo do jeito que eu penso, sou e sempre fui. Eu não vou ficar calado, sentado num camarote vendo tudo isso acontecer.

Tem muita gente que também tem o mesmo posicionamento que eu tenho, mas essa “muita gente” ainda é pouco em relação ao número daqueles que estão contra tudo o que temos defendido.

Como reverter essa situação?

Insistindo. Não desistir, tendo persistência, não entrar no processo de desistência. É assim que a gente pode reverter a situação. Mais ainda: Tendo paciência e força para continuar se posicionando contra todas as coisas que estão erradas.