"Rural landscapes are a vital componente of the heritage of humanity. They are also one of the most common types of continuing cultural landscapes. (...) This document encourages deep reflection and offers guidance on the ethics, culture, environmental, and sustainable transformation of rural landscape systems, at all scales, and from international to administrative levels".

(ICOMOS-IFLA, "Principles concerning rural landscapes as heritage". ICOMOS General Assembly, New Delhi, Índia, 15 December 2017, p. 1)

Na sequência da adopção de duas novas Cartas do ICOMOS, Salalah Guidelines for the Management of Public Archaeological Sites e ICOMOS-IFLA Principles Concerning Rural Landscapes as Heritage, realizou-se na Faculdade de Arquitectura da Universidade do Porto uma sessão de esclarecimento/debate, numa parceria entre o Centro de Estudos de Arquitectura e Urbanismo da FAUP, o ICOMOS Portugal e as Direcções Regionais de Cultura do Alentejo e do Norte, no passado dia 22 de Junho.

O encontro, a repetir em data oportuna noutras cidades e universidades, foi organizado por Orlando Sousa e Rafael Alferim, do ICOMOS Portugal e da Direcção Regional de Cultura, e por Clara Vale e Hugo Pires, do Centro de Estudos de Arquitectura e Urbanismo da FAUP, com o propósito de esclarecer a comunidade científica ligada ao património arquitectónico para a importância da paisagem rural, dos sítios arqueológicos públicos, promovendo a reflexão em torno destas temáticas e alertando para a necessidade da sua conservação. Este texto centra-se apenas na Carta das Paisagens Rurais como Património.

Para efeito da Carta, a paisagem rural é definida como área produzida pela interação do homem com a natureza1, utilizada para a produção de bens alimentares e outras fontes naturais renováveis, através da agricultura, pecuária e pastorícia, pesca e aquacultura, silvicultura, caça e extração de outros recursos, como o sal. As paisagens rurais são recursos multifuncionais e, o mesmo tempo, todas as áreas rurais têm significados culturais que lhes foram atribuídos pelas comunidades locais. Todas as áreas rurais são paisagens. As paisagens rurais incluem quer áreas bem geridas quer áreas abandonadas, que possam ser reutilizadas. Desde espaços rurais de grandes dimensões, até espaços de pequenas dimensões. As paisagens rurais como património prendem-se com as dimensões tangíveis e intangíveis do património rural.

Como refere Françoise Choay2, de um conceito inicial de património, que dizia respeito ao domínio privado, no sentido de herança de um determinado bem que é transmitido de geração em geração, passamos para um conceito actual, de mundialização dos conceitos e dos valores, em que as nossas heranças culturais são transformadas em produtos disfarçados para consumo mercantil, e o património é visto como bem público, de que todos deveremos usufruir e partilhar, à escala mundial. Caímos recorrentemente num de dois erros, referidos pela autora. Ou fazemos tábua rasa do património, desprezando as marcas e vestígios do passado, considerados anacrónicos, própria da fábula inesgotável dos começos absolutos. Ou consideramos tudo património, valorizando excessivamente os testemunhos do passado, como se fosse possível negar a passagem do tempo e as transformações inerentes a essa passagem, obrigando as sociedades ou comunidades a permanecerem iguais a si próprias ad eternum e, com isso, negando a natural evolução do seu quadro de vida.

Esse fetichismo pelo património tem uma outra face, visível nesta Carta das Paisagens Rurais como Património. Trata-se da inscrição e museificação dos bens culturais à escala mundial, rotulados como bens de consumo turístico. Curiosamente, em todas as culturas coexistia o respeito pelo passado com a vontade de inovar, segundo ritmos e relações diferentes em cada caso. A pretensa uniformização de conceitos e valores culturais, à escala mundial, põe em perigo o maior património de todos, que é a diversidade que nos foi e é oferecida pela coexistência das diferentes culturas.

Por outro lado, o valor do património, sobretudo arquitectónico e arqueológico, advém de duas dimensões ou escalas de valores que são perfeitamente diferenciadas. O seu valor intrínseco, na medida em que os objectos arquitectónicos ou arqueológicos a valorizar são perfeitamente tangíveis. E o seu valor circunstancial, relativo às características intangíveis associadas a cada um desse objectos patrimoniais.

A produção agrícola que compõe as paisagens de norte a sul de Portugal e, diga-se em abono da verdade, no resto do mundo, é matéria muito instável, dependente de uma série de condicionantes que, julgo, não cabem nessa rotulagem pretendida pelo ICOMOS. Se um determinado território, seja por que razão for, deixou de ser agricultado, qual será o sentido de patrimonializar a produção agrícola que não existe e à qual ninguém, da comunidade local, reconhece importância económica ou social? Como refere Álvaro Domingues, o território e a paisagem são construções sociais e, por isso mesmo, conceitos e realidades em permanente mutação. Patrimonializá-las é assumir, ainda que implicitamente, a sua cristalização e passagem para o domínio do imaterial e do intangível. E forçar as comunidades a fazerem o mesmo, permanecendo paradas no tempo.

Em jeito de nota de rodapé, porque os assuntos se cruzam, a Direcção Regional de Cultura do Norte tem vindo a promover os Dias do Património a Norte - palcos de cultura viva, evento em rede que, ao longo de seis meses, transforma oito lugares patrimoniais da região Norte de Portugal, em palcos de programação artística, cultural e gastronómica, que tem por finalidade endereçar um convite à comunidade para conhecer a riqueza viva deste património a Norte. No último fim-de-semana de Julho, as actividades passaram em Outeiro, Bragança, proporcionando não só descobertas e experiências diversas relacionadas com a Basílica do Santo Cristo, edifício impressionante, classificado como Monumento Nacional mas, sobretudo, o envolvimento da comunidade local, afinal de contas, a principal interessada e afectada pela existência de tão notável exemplar arquitectónico do barroco português.

Fica o registo de um dia muito bem passado, no meio rural, à conversa com Álvaro Domingues e Helena Freitas e ao som do Coral Brigantino e do Coro da Basílica Menor de Santo Cristo de Outeiro, com condução e coordenação de Artur Carvalho e António Miguel. As próximas datas desta iniciativa da DRCn são em Mogadouro e em Alfândega da Fé e estamos todos convidados.

Notas

1 Esta definição encontra-se já consagrada na Convenção Europeia da Paisagem, assinada em Florença em 2000, segundo a qual, a paisagem resulta da acção e interacção do homem com a natureza.

2 Françoise Choay, Património e Mundialização (2005), p. 24.