Jean-Pierre Raynaud (1939) é um escultor francês que, na maior parte do seu conjunto de trabalhos, explorou uma peculiar preocupação contínua com a quadricula, materializando-a através de azulejos cerâmico brancos de 15cm com juntas negras de 5mm, tornando-se esta a sua assinatura artística.

Perante a sua incompatibilização com um modo convencional de habitar, Raynaud desenvolve uma insistente procura pelo desenho de espaço arquitectónico e é assim que inicia o desenvolvimento da sua escultura mais célebre. Ao longo de 24 anos, este constrói uma escultura habitável, como sua habitação pessoal, mas rapidamente esta casa/escultura se tornou não habitável, ou pelo menos, difícil de se integrar num habitual modo de habitar.

Eu quero construir uma casa, mas não a casa que qualquer um tem, ou seja, uma casa para viver com a minha mulher. (…) Vivi alguns meses nesta casa. Foi uma nova experiencia para mim, e aí um entendi que nunca iria me conseguir adaptar a um lugar “normal”. (…) Senti que tive de colocar em causa uma parte da minha vida pessoal. (…) Iniciei o meu divorcio, esse foi o primeiro assunto. Eu disse, “tenho de readquirir o sentido do meu corpo, o que eu sou”.
(Raynaud, Jean-Pierre, 1993) (Tradução Livre)

Em 1969, em La Celle-Saint-Cloud em Paris, Raynaud principia uma longa jornada de desenvolvimento do seu projecto mais íntimo, a casa que será a manifestação do seu próprio ser e uma invenção e reinvenção do seu modo de habitar1. O seu “objectivo era não fazer uma obra de arte, mas sim viver a arte como um objetivo”.

Construídos de forma obsessiva, os espaços interiores da habitação fixavam-se numa quadricula regular de azulejos cerâmicos brancos com juntas negras, tal como as suas esculturas, que regulavam as paredes, o pavimento, os tectos e toda a mobília fixa que determinava o programa das divisões.

Desde o inicio da sua construção, em 1969, a casa teve cinco estágios, que terminaram na sua demolição, em 1993. Como acto final, os seus fragmentos foram exibidos em diversas instalações numa estratégia poética de perpetuação da casa.

De uma forma franca esta escultura/casa de Raynaud acompanhava os ideais utópicos que efervesciam simultaneamente noutros projectos de arquitectura. Eram finais da década de 60 e inícios da década de 70, anos de enormes mudanças socioculturais, em que os arquitectos utópicos sonhavam com sociedades ideias e projectavam não-lugares para as grandes cidades. Muitos desses colectivos de arquitectos desenhavam projectos, que nunca seriam construídos, mas que eram matéria de discussão e inovação após períodos de absoluto funcionalismo derivado do movimento moderno, projectos esses que marcariam a história da arquitectura.

O colectivo de arquitectos Superstudio, formado em 1966 em Itália pelos arquitectos Adolfo Natalini and Cristiano Toraldo di Francia, partilhava desses mesmos ideais do movimento de arquitectura radical que se instalava nos finais dos anos 60. Parte desse movimento consumou-se na exposição teórica e conceptual, intitulada “Superarchitettura”, que teve lugar em Itália em 1966. Junto com os Archizoom, os Superstudio exerceram uma participação protuberante nesta mesma exposição, dando-lhe proeminência na esfera da arquitectura.

Entre 1969 e 1971 os Superstudio desenvolveram um projecto, intitulado de "Istogrammi di Architettura", ou seja, histogramas da arquitectura, que consistia num manifesto com base na rejeição de imposições da tradição e na procura pelo sonho de uma nova arquitectura adaptada às novas ideologias. Este projecto era materializado através de uma quadrícula infinita, aplicável em diferentes áreas de interesse e escalas.

Essa quadrícula apareceu com maior relevância nos seus projectos, “Monumento Continuo” de 1969, “12 Ideal Cities” de 1971 e nas serias de design de mobiliário “Misura” de 1969/72 e materializava-se através de uma uma superfície isotrópica em que todo o espaço e o ser se anulava para que fosse possível, como objectivo final, uma arquitectura em prol da manifestação do ser.

Curioso é constatar que, tanto num projecto como noutro, as características físicas da materialidade destas superfícies e o sentido de manifestação do ser espiritual através do ser físico relacionado com o espaço habitável, são semelhantes: é apenas a forma de corporalização dos projectos que diverge.

Enquanto os Superstudio faziam um manifesto do ser através da critica à arquitectura modernista e à sociedade, com projectos realizados no papel, Jean-Pierre Raynaud fazia um manifesto do ser através da sua relação com a arquitectura, com um projecto da construção da sua obra de arte mais significativa, a sua habitação.

Nota

1 Sobre este tema foi realizado um livro, intitulado de La maison de Jean-Pierre Raynaud : Construction Destruction 1969-1993, acompanhado de um filme de Michelle Porte, intitulado de La maison de Jean-Pierre Raynaud.