A recente votação e aprovação na Assembleia da República do Projecto de Lei 495/XIII, que permite a profissionais não arquitectos exercerem os actos próprios da profissão, para além de repúdio e estupefação, evidentes desde logo na Moção de Repúdio promovida pela Ordem dos Arquitectos, nas manifestações que tiveram lugar na Assembleia da República e nos vários artigos de opinião, entre os quais o da colega Sara Silva Lopes aqui no Wall Street International Magazine, merece igualmente reflexão. Sobretudo por não ter motivado até à data nenhum movimento de indignação da sociedade civil, que encara este assunto com a mesma indiferença e distância com que olha para tudo que não lhe diz respeito.

No entanto, este assunto, verdadeiramente transversal à nossa sociedade e muito mais importante do que os lobbies que se movimentam nos corredores da Assembleia da República fazem crer, diz respeito a todos nós, mesmo os que não são arquitectos. Pela simples razão que implica o ordenamento do nosso território, a forma física como nos organizamos enquanto sociedade. Parece que só nos lembramos da falta de ordenamento nas horas difíceis ou nos momentos de catástrofe, como os que vivemos nos incêndios do ano passado. E essa indiferença não é apenas lamentável, como é perfeitamente evitável, o que a torna ainda mais gravosa do interesse público.

Mas vamos por partes. Quais são então os actos próprios dos arquitectos, que recorrentemente estão sob ameaça de outros profissionais? De acordo com o disposto no Estatuto da Ordem dos Arquitectos (Lei nº 113/2015, de 28 de Agosto), nomeadamente, no número 2 do seu artigo 44º, são actos próprios dos arquitectos a elaboração ou apreciação de estudos, projectos e planos de arquitectura. Para além destes, os arquitectos podem intervir em estudos, projectos, planos e actividades de consultoria, gestão, fiscalização e direcção de obras, planificação, coordenação e avaliação, reportadas à edificação, urbanismo, concepção e desenho do quadro espacial da vida da população, visando a integração harmoniosa das actividades humanas no território, a valorização do património construído e do ambiente. Curiosamente, a alínea a) do número 2 do artigo 45º do mesmo Estatuto, dispõe que os arquitectos têm o direito de exercer a sua profissão sem interferência na sua autonomia técnica nem concorrência de profissionais sem formação adequada. Como é evidentemente o caso presente, que fere a autonomia da prática da arquitectura no seu âmago.

Curiosamente, o problema da Arquitectura no contexto nacional foi já um dos temas principais que ocuparam o 1º Congresso Nacional de Arquitectura, promovido pelo, então, Sindicato Nacional dos Arquitectos em Maio e Junho de 1948. Na 1ª Sessão de trabalhos desse Congresso, de acordo com o Relatório da Comissão Executiva, foi referido que “o Arquitecto não beneficiava em Portugal de condições propícias para produzir arquitectura de alta qualidade. Desde o ensino (...), à falta de cultura artística e de cultura geral (...), à escassa representação dos arquitectos nos organismos que tinham de se ocupar dos problemas de arquitectura, tudo isso contribuía para um estado de coisas que não satisfazia os arquitectos na sua ânsia de prestarem ao País e à Arquitectura relevantes serviços”1. Nas conclusões do Congresso, são sugeridas medidas susceptíveis de permitir uma melhor acção profissional. De entre várias medidas propostas, a primeira e, consequentemente, mais importante proposta referia que o estudo dos problemas de Arquitectura seja - como é lógico - confiado aos arquitectos.

Vários foram os contributos feitos durante as sessões do Congresso que acentuaram a necessidade de defender os actos próprios da profissão. A título de exemplo, o Arquitecto Ernâni Nunes Soares referiu, nas suas conclusões, a urgência de tomar medidas para integrar a profissão do arquitecto na sua verdadeira função, dando-lhe a resolver até os mais ínfimos problemas da arquitectura, tornando a sua actuação obrigatória em todos os projectos que a ela digam respeito. Para o autor, deverá ser reprimida a actuação dos amadores, a quem só os arquitectos, pelo organismo que os representa, poderão reconhecer competência para projectar.

Passados mais de cinquenta anos, é quase absurda a actualidade destas conclusões e o facto de nos revermos nas preocupações que acompanhavam a classe dos arquitectos de então. Torna-se incompreensível como foi possível em tão pouco tempo, retroceder até aqui, depois da luta e trabalho de tantos pela dignificação da profissão e da consagração da Arquitectura como bem de interesse público. Já em 1948, o Congresso apontava para a necessidade de se criar um Conselho Superior da Arquitectura, constituído por arquitectos, ao qual incumbia a função de promover o justo e harmonioso desenvolvimento da Arquitectura no plano nacional.

Em Junho de 2015, na sequência da aprovação da Política Nacional de Arquitectura e da Paisagem (PNAP), foi criada a Comissão de Acompanhamento da Arquitectura e da Paisagem, e foram precisos menos de três anos para colocá-la em causa por um Projecto de Lei cuja motivação é o interesse de poucos em detrimento do interesse de todos. Com essa votação, ao contrário de nos aproximarmos da maioria dos países europeus na implementação de políticas públicas de Arquitectura, rumamos a sul, em direcção ao Terceiro Mundo.

No entanto, ao contrário do que prevê a PNAP, não parece que exista um amplo reconhecimento nacional da arquitectura como um bem público que promove o bem-estar social, a competitividade económica e a identidade cultural. Para isso, tem também contribuído a própria classe dos arquitectos, muitas vezes mais interessada na obra de autor e no extraordinário valor que o monumento tem por si só, como objecto isolado capaz de representar a classe e a Arquitectura nacional. Ora, se há coisa que caracteriza a Arquitectura portuguesa, como referiram por mais de uma vez Alexandre Alves Costa ou Fernando Távora, para citar apenas alguns, é a riqueza da sua diversidade. E essa riqueza está também nas pequenas coisas que conformam as nossas cidades e o território e que são, por definição e direito próprio, campo da Arquitectura. Não se deve resumir a cultura arquitectónica do país e a sensibilização dos cidadãos para essa cultura arquitectónica ao reconhecimento de dois ou três autores extraordinários. Deveremos saber reclamar os pequenos gestos do dia-a-dia como parte integrante da disciplina, coisa que outros não têm pudor em fazer e, consequentemente, aparecerem aos olhos do cidadão comum como aqueles que verdadeiramente resolvem os seus problemas.

Nota

1 1º Congresso Nacional de Arquitectura, Relatório da Comissão Executiva, Teses, Conclusões e Votos do Congresso. Sindicato Nacional dos Arquitectos. 1948, p. XXXVII.