Vejo agora: não é fácil
seguir essa ladainha
entre uma conta e outra conta,
entre uma e outra ave-maria,
há certas paragens brancas,
de planta e bicho vazias,
vazias até de donos,
e onde o pé se descaminha

(João Cabral de Melo Neto)

Em 1963, o realizador Nelson Pereira dos Santos adapta para o cinema a obra homónima de Graciliano Ramos, *Vidas Secas. O romance, de 1938, inscreve-se na segunda fase do modernismo brasileiro e é considerado uma obra-prima do autor que teve sempre uma actuação bastante política como jornalista e escritor, atitude esta que aparece retratada em suas obras, de maneira directa e indirecta. Este texto fala sobre o filme de Nelson Pereira, das suas escolhas poéticas e estéticas e, sobretudo, da maneira como o cinema, neste caso, conseguiu captar a essência da obra literária e converter o regime do escrito no regime do visual sem trair a obra que o originou.

Um clássico é um livro que nunca terminou de dizer aquilo que tinha para dizer. Eis uma das razões que Ítalo Calvino invocou para lermos os clássicos. Isto funciona também em relação ao cinema. Um clássico, no cinema, é um filme que sempre tem algo a dizer-nos, mesmo que tenham passado décadas sobre ele. É o caso de Vidas Secas. Sexto filme do realizador Nelson Pereira dos Santos, baseado no romance homónimo de Graciliano Ramos, continua a ser um filme com muito a dizer passados já mais de 50 anos sobre ele.

Por isso o meu interesse em voltar a ver este filme, única película brasileira escolhida pelo British Film Institute para integrar a lista dos filmes fundamentais numa cinemateca. Assim, pois, Vidas Secas continua a ser visível e a suscitar leituras novas a cada re-visão. Ao contrário da literatura, que vai ganhando prestígio com a longevidade, o cinema, pela sua ligação intrínseca com o aparato tecnológico, tende a envelhecer mais depressa. Não são muitos os filmes que resistem ao tempo e que superam algumas limitações que possam daí advir.

O filme de Nelson Pereira dos Santos é realizado em 1963, em pleno período do Cinema Novo no Brasil, encontrando-se imbuído de uma estética que valorizava a capacidade dialógica do cinema com o seu povo e as suas raízes, fossem elas urbanas ou rurais e surge no rasto do Neorrealismo italiano. Além da referência e filiação explícitas ao legado de Rossellini, De Sica, Zavatini, entre outros, o Cinema Novo vai ainda ser influenciado pelo espírito da Nouvelle Vague francesa.

Uma das marcas registadas desta nova cinematografia, fruto da herança neo-realista e da nouvelle vague, era o seu carácter documental e político, entendendo aqui o político como uma atitude perante o real e as suas representações e não apenas como uma tomada de posição diante da eterna associação do político ao partidário. A política, no caso desta cinematografia, revestia-se de uma atitude de inserção dentro do que havia de mais profundo na sociedade brasileira: seus medos e seus mitos. Seu povo, sua terra vasta e diversa, e a sua situação de país continente, rico e, paradoxalmente, miserável. Em plena sintonia, pois, com o que acontece no final dos anos 50 em que o cinema é marcado por uma série de pequenas revoluções poéticas e estéticas que renovaram a produção cinematográfica, deitando por terra o modelo do cinema clássico norte-americano, que começara a se tornar obsoleto, e de propor uma maneira diferente de se lidar com a representação do real.

Vidas secas: do livro ao filme

Enquanto o cinema reescrevia a sua história e inscrevia-se na realidade que o circundava de uma outra maneira, Nelson Pereira dos Santos já realizara 6 (seis) filmes, e trabalhara pelo interior do Nordeste brasileiro, acompanhando de perto o fenómeno da seca. Realiza, neste período, uma série de documentários sobre esse tema que o marca profundamente: a seca e tudo o que com ela se relaciona: a fome, a miséria, o desespero, a morte. A morte de pessoas, gado, vegetação e o desejo de fuga daqueles que, à partida, não têm muito para onde ir.

O realizador começa a escrever uma série de guiões para realizar um longa-metragem de ficção que retratasse a vida daqueles homens que, nas palavras de Euclides da Cunha eram, antes de tudo, fortes: os sertanejos. Nenhum dos guiões que fez conseguia satisfazê-lo porque acreditava que as suas palavras não traduziam aquilo que ele queria mostrar: todos eram vazios. Foi o encontro com o livro de Graciliano Ramos que fez com que ele concluísse que não valia a pena perder mais tempo com a sua escrita e com a sua procura; o que ele queria estava já ali, pronto para ser usado: o romance Vidas Secas era já um guião completamente acabado.

O realizador sabia de antemão que Graciliano não o deixaria alterar a obra, mas via também que ela não necessitava de ser alterada: a prosa seca e elegante do autor, a escrita quase jornalística - de uma precisão cortante - era perfeita para o filme que ele queria fazer. Juntavam-se aqui, em obras de carácter semiótico tão díspar, literatura e cinema, uma forma única de abordar o mundo e de representá-lo. Tanto o realizador quanto o autor estavam imbuídos do espírito político tão comum aos intelectuais da época e, como tal, sabiam necessária a mudança na maneira de se apresentar o mundo e as questões que, mesmo seculares como a seca, continuavam a pairar sobre uma realidade que se teimava em não mostrar ou mesmo ocultar. A arte, nestes dois criadores, é um gesto de intervenção no real e de provocação. Sabiam ambos que os tempos mudam, mas que algumas histórias continuam a repetir-se vezes sem conta e que podem funcionar como uma metáfora da miséria humana e do seu isolamento.

A obra de Graciliano, seu quarto livro, nasce em 1938, e inscreve-se na segunda fase do modernismo brasileiro e também naquilo que foi chamado pela crítica de romance regionalista. O estilo enxuto e a maneira de narrar a história, focalizando as atenções nas personagens, mais que na trama mesma, a ligação entre os capítulos que podem funcionar como partes isoladas, torna visível a dureza do espaço retratado. Não há aqui nostalgia nem vontade de ocultar o que já não se pode esconder, a condição humana, em meados do século XX, no interior do Brasil, era a mesma de há muitos anos atrás e as situações vividas pelos personagens, por mais que divergissem de realidades outras, falavam de um problema presente também nos centros urbanos, também em outros países: a incapacidade de comunicação, o estado agudo de alheamento e de distanciamento em que viviam todos.

Mandacaru quando fulora na seca

Com o guião pronto e a vontade enorme de realizar um filme, Nelson volta para o Nordeste, mais precisamente para uma cidade encravada no meio do sertão, Juazeiro da Bahia, disposto a filmar. Estávamos em 1959 e, a despeito das expectativas do realizador, este é um ano de fortes chuvas naquela parte do sertão. E se o sertanejo, conforme Euclides da Cunha, era antes de tudo um forte, devia-se ao facto de que a terra que o vira nascer era também ela mesma, forte. Renascia, a cada chuva, das cinzas e cobria-se rapidamente de verde e do vermelho das flores do mandacaru. Não foi possível, portanto, realizar o filme naquele ano e, para não perder a viagem, Nelson Pereira filma Mandacaru Vermelho, um romance marcado pelo sertão renascido e pela beleza que dele emana quando "fulora" o mandacaru.

O filme adiado é, finalmente, realizado em 1963 em Palmeira dos Índios, interior de Alagoas, cidade onde viveu muitos anos o autor do romance. Como disse, Nelson Pereira sabia que não podia alterar muito o romance original e fez apenas duas modificações que são bastantes pertinentes à diegese do filme. A primeira diz respeito a data. No livro, a história se desenrola no mesmo ano em que o livro é escrito, 1938. O realizador prefere saltar um bocado no tempo e localiza o seu filme entre os anos 41 e 42, período da II Grande Guerra. A intenção do realizador é clara: enquanto o mundo estava em convulsão, o sertão continuava indiferente ao que ocorria para além dele. Até porque, acredito, não tinha muita certeza se haveria um "para além" dele e da sua terra ressequida e dura. Além disso revela o ensimesmamento de uma região que se traduz no comportamento daqueles que ali habitam, uma espécie de autismo ambiental que seca tudo à volta, inclusive as pessoas, tornando impossível qualquer tipo de comunicação.

A segunda modificação que o filme apresenta diz respeito a uma escolha formal do seu realizador. Fabiano, a personagem principal, em dada altura da sua vida cruza com um cangaceiro jovem e deste encontro surgem ideias que são expressas, no livro, como um pensamento. Nelson Pereira poderia ter utilizado, como é comum nestes casos, o recurso da voz off. Mas ele preferiu presentificar o pensamento e convertê-lo em algo visível e partilhável, por Fabiano e por nós. Através da imagem, elemento essencial da narrativa fílmica, apresenta-nos a maior encruzilhada da vida da personagem: escolher entre o cangaço, forma de libertação, ou voltar para a sua família, obrigação e lastro que o cingia àquela terra inóspita e desesperançada. De resto, o filme segue o livro. Mais que seguir, reinventa-o numa outra linguagem, o que não trai o objecto original, mas enriquece e ilumina as palavras de Graciliano. O livro é colorido, o azul e o encarnado são cores evocadas como para ilustrar o calor e o céu sem nuvens que não agoura nada de bom. O filme é a preto e branco e a fórmula encontrada por Nelson Pereira para criar o mesmo clima, apesar da ausência de cores, é a maneira como a paisagem nos é mostrada, em planos abertos e gerais, a terra ressequida e alquebrada, as árvores mortas, os arbustos que se arrastam pelo chão, o céu límpido e sem uma nuvem e um horizonte sem fim.

Onde o pé se descaminha

Durante muito tempo o cinema foi acusado de não conseguir produzir metáforas. Como poderia fazê-lo já que a metáfora é uma imagem que surge do encontro inusitado de palavras, se o material do cinema é já imagem ela mesma? Logo se percebeu que não era bem assim. Que também as imagens, quando se juntavam e se convertiam em signos no ecrã, poderiam gerar outras imagens e ultrapassar o regime da visibilidade imediata, da legibilidade rasa. O cinema não é, como muitos quiseram, uma janela para o mundo. É, como as artes o são, um sistema complexo de representações. E se as suas representações estão mais vincadas, aparentemente, no real, é porque ele conseguiu convencer-nos a todos da sua grande mentira de base: a imagem diz o mundo.

No caso do filme Vidas Secas a tarefa do realizador foi ainda maior: transformar imagens calcadas no real, utilizar a linguagem jornalística e documental da obra de base e realizar um filme que resultasse sobretudo metafórico, que saísse do espaço-tempo onde está imbricado e pudesse se tornar universal, apesar de profundamente localizado no sertão nordestino.

O filme e o livro falam sobretudo da linguagem. Fabiano quase não fala porque não domina a língua e por ser, estruturalmente, analfabeto. As palavras não fazem sentido na sua vida e na vida das pessoas à sua volta - a mulher, os filhos e todos aqueles que ele vai encontrando pelo caminho. Ele se sente diminuído, como que amputado, por esta sua incapacidade de domar a linguagem verbal, de utilizar as palavras de um modo correcto, como fazem os doutores, a polícia, o fazendeiro. Como fazem todos aqueles que têm o poder: os patrões, os que mandam num mundo para onde ele veio apenas para obedecer e resignar-se.

O sertanejo, pelo menos Fabiano, não é um forte. É alguém enredado nas suas circunstâncias e que delas não consegue fugir. Sente-se ameaçado por aquilo que ele não domina, a linguagem e a chuva, que teima em não cair. O uso plástico das formas circulares, no filme, acentua este enredamento sem pontos de fuga de Fabiano e da sua família, do sertanejo em geral ou do ser humano. A câmara descreve círculos e mais círculos, o caminho percorrido pela família deste vaqueiro não segue em linha recta, eles caminham e, aquilo que a câmara nos mostra, é a circularidade dos seus passos; mesmo que anseiem, não conseguem sair do lugar, que é bem maior que os seus passos.

Os círculos inscrevem ainda o filme no tempo mítico, eterno e imutável. No tempo que permanece fora do tempo, no tempo que não se consegue contar. A Guerra explode lá fora e o sertão continua ensimesmado, alimentando-se, sobretudo, do enorme vazio da sua paisagem que parece devorar tudo mais à sua volta. O silêncio é também símbolo de uma permanência, de um vazio profundo encimado por um céu que teima em não se cobrir de nuvens. As imagens são quase vazias, como o sertão na época da seca. Tanto espaço e nada me pertence, pensa Fabiano, que se sente como um hóspede indesejado numa terra que não é dele e que não faz nenhum esforço para acolhê-lo. Ele se reconhece como um viajante em eterna errância, mas, ao mesmo tempo, sente-se plantado numa terra alheia e da qual não consegue sair.

O silêncio, no filme, aparece como uma presença. É palpável. Não há banda sonora. Nelson Pereira queria evitar o folclore, a ligação à música da terra que podia desviar os sentidos em outra direcção. Não, Vidas Secas não é um filme convencional. A música é parte da matéria do filme e deve ser usada significativamente e não como pano de fundo ou ilustração. Posição também defendida pelo cineasta espanhol Luís Buñuel, que contrariava o lugar comum do cinema comercial que teme o vazio. Ouvimos apenas o som do carro de bois, das rodas que se movimentam lentamente e que rangem como um lamento ancestral. Ouvimos o som no começo e no fim do filme, acentuando ainda mais a circularidade da diegese, do fora de tempo e da própria História que se tornou linear e teleológica. Não há um fim a se alcançar, porque não há um começo, tudo faz parte do mesmo instante, eterno e indivisível, que está sempre a repetir-se, vezes sem conta, dia após dia, ano após ano.

A imagem é metafórica, converte o sertão em algo diferente dele mesmo, algo que está para além dele, mas que só os espectadores, que estão fora, é que o conseguem divisar. Fabiano e a família estão dentro e não vêem nada para além daquilo que a vista alcança. O filho ouve uma benzedeira falar em inferno. Inferno, palavra estranha, não conhecida. Pergunta ao pai e a mãe: o que é inferno? Como poderiam eles responder se quando estamos dentro de alguma coisa não nos damos conta da sua existência? Lugar ruim, espeto quente… mais palavras. O menino sai e a câmara acompanha as suas palavras e o seu olhar, que abrange tudo a volta. A câmara, como o olhar do menino, vagueia e gira, mostrando uma terra seca e inóspita, árvores mortas, uma casa no meio do nada e o sol inclemente a queimar tudo que ali está. Inferno, inferno…

O inferno é concretizado para nós, que estamos fora dele, mas continua, para o menino, uma interrogação. O regime do visual tem as suas limitações e regras que foram se consolidando ao longo de uma existência deveras curta. A grandeza deste filme é ultrapassar estas regras e convenções e fazer do seu discurso visual o próprio discurso narrativo, que é auto referente e especular. As personagens e o espaço que elas habitam e por onde circulam é também a sua fala e a limitação da paisagem é também a sua limitação. Fabiano é, ele mesmo, uma metáfora. Metáfora do homem que não consegue SE dizer. Ensimesmado, como o sertão, preso ao seu autismo ambiental, apesar da família, é um homem só.

Assum preto veve sorto mas num pode avuá

Um clássico, dizia também Calvino, é um livro que vem antes de outros clássicos. Mas quem leu os outros antes e depois lê aquele, reconhece de imediato o seu lugar na genealogia. Vidas Secas, antecipa, em décadas, a actual corrente documental que veio renovar o cinema contemporaneamente. Em momentos de crise, onde o regime da imagem se torna a cada dia mais questionável, a volta ao real parece ser uma opção. Opção esta que aparece ciclicamente na história das artes e da literatura ocidental desde sempre.

O filme, como a obra que o originou, aposta nesta volta ao real, mesmo compreendendo e demonstrando que o real e a visão que temos dele é sempre relativa. Que é preciso ter consciência desta relatividade e da incapacidade da arte de efetivamente, devolver do real àquilo que nele foi buscar. Porque a arte, e o cinema, que como sabemos é a sétima, tem o papel de transformar o que vê através do que mostra. A seca ainda é real, como era real em 1938 ou em 1963, ano de realização do filme. A miséria dos homens e a sua incapacidade de interacção com o outro, com os outros, continua actual. E o filme, como o livro, ainda não acabou de dizer tudo que tinha a dizer. Por isso é preciso voltar sempre a eles. Talvez como uma maneira, metafórica quiçá, de darmos alguns passos em direcção ao mundo que nos circunda e o qual, muitas vezes, não passa de representação.