Psicologicamente, a vivência de culpa, ser culpado, sentir-se culpado, fragmenta, divide o indivíduo. A culpa é o duplo, o outro que acompanha. Essa é uma vivência embaraçosa que geralmente desencadeia o desejo de que a culpa deve ser escondida, aplacada ou eliminada.

Para falarmos dos diversos aspectos que envolvem a questão da culpa, das dificuldades no lidar com a culpa, é necessário conceituá-la e entendê-la. Afinal, o que é a culpa, o que faz alguém se sentir culpado?

Do ponto de vista psicológico, toda vez que alguém é responsabilizado ou que se responsabiliza por algum comportamento fora do esperado, fora do devido ou do legal, pode se estabelecer culpa. Agir fora do convencionado (pela sociedade, pela comunidade, pelo ambiente familiar e do trabalho), agir fora do previsto estrutura e desencadeia culpa e desse modo dois tipos de culpa são configurados: a culpa gerada por não se adaptar ao estabelecido e a culpa gerada por não corresponder às expectativas e acordos estabelecidos com o outro na intimidade relacional.

O funcionário que atrasa ou que erra; a autoridade que não cumpre responsabilidades, que não atende prazos e regras estabelecidas, são culpados. Erros, falhas por parte de profissionais como médicos e engenheiros, por exemplo, que com suas faltas causam prejuízos, danos e até mortes de pessoas, ou perdas para clientes e empresas, esses profissionais são culpados. Tais questões são tão frequentes que já sofrem penalidades legais, já foram judicializadas, embora constantemente deixem resíduos não solúveis pela esfera legal, resíduos que podem carregar de culpa seus perpetradores. O médico que se sente incapaz de realizar cirurgias, por exemplo, depois de ser inocentado em um processo legal, pode continuar sentindo-se culpado. Ele não consegue se desculpar, não consegue livrar-se da própria culpa, pois sabe que uma variável mínima, inexpressiva, foi a causa de tudo, foi a causa do erro médico: sua insegurança ou sua insuficiência profissional.

Nos compromissos, nos acertos, nos relacionamentos afetivos íntimos, as situações que estabelecem culpa são revestidas de disfarces, de mentiras, e por isso a culpa é muito próxima do engano. Questões de fidelidade conjugal, de associados e familiares são mantidas sob aparências, com manutenção de regras e acordos. Nos relacionamentos afetivos de casal, após algum tempo, frustrações podem passar a existir e, consequentemente, quando esses relacionamentos são mantidos, não existe suporte de coerência amorosa, só existe suporte de conveniência social e familiar que deve ser conservada. Tais relacionamentos não são presididos pela dedicação e satisfação com o outro, ao contrário, o determinante na continuidade são conveniências e medos. Nesse contexto, a vivência da culpa é muito próxima da vivência do engano, uma vivência que neutraliza tormentas transformando-as em medo de ser descoberto, em desconcerto, mais administráveis que a vivência de culpa.

Observando esses aspectos, essa dinâmica e suas implicações, a psicanálise, por meio de um de seus representantes teóricos - Melanie Klein - fala da culpa como vivência de reparação. Para ela, ter culpa é fundamental, é a maneira de reparar cisões, divisões dos primeiros meses de vida, nos quais o seio ora é visto como bom, ora como mau. O seio é bom quando gratifica, quando goteja leite ao ser sugado, recebendo assim, fantasias gratificantes, boas, e quando o seio não gratifica, não goteja, ele é o seio mau que recebe uma série de fantasias destruidoras e ruins. Mais tarde, com o passar dos meses, a criança percebe que o seio - tanto o bom quanto o ruim - fazem parte da mesma mãe, da mesma fonte nutridora. Descobrir isso cria um drama, uma imensa culpa na criança, pois ela percebe que tentou destruir o objeto que a alimentava. Surge a culpa, que é entendida por Melanie Klein como vivência de reparação. Por meio da culpa a criança unifica a mãe - cindida pelas suas fantasias - recuperando-a. Essas são as palavras da análise psicanalítica de M. Klein, na qual focar as “relações objetais” permite entender os conflitos inconscientes da criança, e posteriormente, do adulto.

Acontece que o homem está no mundo, constituindo uma totalidade. Não há separação entre o indivíduo e o mundo, tudo que existe, existe com ele e nele. É como a relação tempo-espacial: o que ocorre, ocorre sempre em um lugar e em um tempo, sem atribuições causalistas – o tempo não causa o espaço e vice versa. No mundo, nos diversos contextos com o outro existem possibilidades, impossibilidades, condições, circunstâncias. Diante de tudo isso, o ser humano, o indivíduo, se sente capaz e se sente incapaz. Ao vivenciar essas capacidades e incapacidades, vão se configurando os processos de satisfação e de insatisfação, estruturando pessoas capazes, satisfeitas, realizadas, ou incapazes, insatisfeitas, não realizadas, com alternâncias simultâneas ou excludentes dos diversos estados. Nessas variações se estrutura a impotência diante do outro, do que ocorre, das circunstâncias, de si mesmo.

A estruturação da impotência diante de qualquer situação, a estruturação da incapacidade é cumulativa, seus resíduos caracterizam sempre não estar correspondendo. As contínuas vivências diante dessa falta, dessa incapacidade geram omissão, geram sensação de medo, de faltas que caracterizarão as vivências de não ser capaz, ou de ser fraco. Sente-se que não é conveniente, não é aceitável deixar que sejam percebidas as fraquezas, percebidas as incapacidades e que é necessário escondê-las, dedicando-se à criação de imagens respeitáveis, de máscaras que escondam o que acham feio, de disfarces que sirvam para enganar e despistar. Por meio da culpa, esconder as incapacidades, as impotências, os medos e fraquezas acontece de uma maneira aceitável, seja nas esferas amplas (sociedade), seja na família, diante dos outros e de si mesmo. Sentir-se culpado é, paradoxalmente, uma maneira de se absolver, de se desobrigar da culpa imputada, neutralizando assim, as dicotomias de acerto e erro, de boa ação e má ação, de pecado.

Na esfera individual, a culpa equivale à pia batismal que exime de todos os males. Neste pântano de divisão, a descontinuidade se impõe. A vida é povoada de fantasmas, de mentiras, de contradições. Cada vez mais a culpa tem que ser alimentada e quanto mais ela cresce para tampar as impotências cotidianas, mais ela esvazia a individualidade. Esvaziado, por estar em função de situações que têm de ser escondidas, o ser humano se nega, perdendo contato com o que é vivo. Vive pela aparência à manter, pelos compromissos a cumprir, pelas motivações a esconder.

Continuarei com o tema da culpa no próximo artigo.