O Museu Judeu de Berlim, inaugurado em 2001, é a extensão do Museu de Berlim. Localiza-se em Lindenstraße, perto de Rondel, na zona oeste da cidade anteriormente dividida e resultou de um concurso ganho por Daniel Libeskind, em 1989, poucos meses antes da queda do Muro. A própria criação do Museu de Berlim, em 1962, surgiu como reacção à construção do Muro, que tornou o Museu de História, localizado no sector controlado pelos soviéticos, inacessível ao lado oeste.

Após a reunificação e depois de bastante controvérsia, a decisão de construir o edifício prevaleceu, destinando-o à exibição do papel dos judeus na história cultural, social e política da Alemanha desde o século IV até ao presente, e aborda pela primeira vez, desde o fim da Segunda Guerra Mundial, as repercussões do Holocausto. Fá-lo através da resposta a três premissas ou conceitos incorporados no próprio desenho do edifício. Em primeiro lugar, a impossibilidade de excluir da história da cidade o contributo dos cidadãos judeus de Berlim. Em segundo lugar, a necessidade de integrar o significado do Holocausto na consciência e memória da cidade. Em terceiro lugar, a urgência de reconhecer que será apenas através da incorporação e aceitação desse apagamento da vida judaica em Berlim que o futuro da cidade e da Europa se poderão concretizar.

O concurso para o desenho do edifício e a escolha da proposta vencedora surgem no contexto da reunificação da Alemanha, que tornou possível a transferência do Governo Federal para Berlim, e do debate sobre o papel da capital no contexto nacional e internacional. Quando o que parecia mais importante era a afirmação e construção de uma imagem como metrópole à escala mundial, feita com capital global, a cidade permanecia amarrada aos fantasmas do passado recente, uma cidade fragmentada pela destruição da guerra, disfuncional, lugar de colapsos sucessivos e o centro da confrontação da guerra fria e das potências nucleares. Tratava-se, portanto, de um debate entre o passado de que ninguém se orgulhava particularmente e o futuro glorioso para o qual Berlim estaria destinada.

O Museu Judeu de Berlim inscreve-se como facto urbano simbólico da cidade, que vai além dos três conceitos do programa-base, referidos anteriormente, num diálogo prospectivo com a história e com a realidade urbana contemporânea de Berlim. Implanta-se ao lado do edifício do museu pré-existente sem aparentemente lhe tocar, embora estejam ligados através de uma passagem subterrânea, simbólica da profundidade das tensões que ligam o presente ao passado e que nem sempre são visíveis ou assumidas. A geometria do edifício assenta numa estruturação do real a partir do intangível1.Desenvolve-se em sucessivos cruzamentos de duas linhas que Daniel Libeskind define como linhas de pensamento, organização e relacionamento. Uma das linhas é recta mas fragmentada; a outra é contínua mas contorce-se em zig-zag. Na intercepção das duas criam-se espaços vazios que, ao longo do percurso do museu, se vão somando como um vazio descontínuo. Essas duas linhas poderão representar aquilo que se perdeu definitivamente (a história dos judeus na cidade), e a própria história da cidade, inseparáveis e repletas de ausências.

A organização de todo o programa expositivo do museu faz-se em torno dessa linha fragmentada que materializa a ausência de uma forma literal, não permitindo que o visitante do museu a percorra, apenas a observe através da passagem nas pontes que a atravessam e representam, cada uma delas, uma perda. Os vazios que são o coração do edifício, em torno dos quais se materializa esse diálogo entre ausência e presença são, afinal, inacessíveis, numa referência directa à “terra de ninguém” criada com o Muro2, e à riqueza do mundo judeu em Berlim, tornado invisível pelo seu desaparecimento no Holocausto. Na intercepção dessas duas linhas há uma série de referências à realidade física da cidade, enquanto texto permanentemente reescrito e, por outro lado, através da sua formalização geométrica, Daniel Libeskind procura estabelecer um diálogo paradoxal entre a ausência e a presença num só gesto, cuja percepção se vai transformando à medida do tempo. Essa linha que percorremos no tempo pode ser entendida como a linha da história e a percepção que temos da linha será a forma como nos vamos apropriando nos vários “tempos” da história, ou os “agoras” que afirmamos a determinado momento. Como refere Walter Benjamim, só à humanidade redimida pertence plenamente o seu passado. Isto quer dizer que apenas para ela, em cada um dos seus momentos, o passado se tornou citável3. O que Daniel Libeskind faz é convocar um passado do qual a Alemanha e, em particular, Berlim, não se consegue libertar. Cita esse passado incorporando-o no edifício e dessa forma, eterniza-o para o poder citar. Se a linha pode ser interpretada como a cidade, contorcida pelos sucessivos “começos absolutos” que se afirmaram pela descontinuidade e pelo vazio, Libeskind propõe vê-la como esperança, uma forma de lidar com a ruptura que não pode ser resolvida, com a memória de um estado limite. Igualmente interessante é a escala humana introduzida na percepção que os visitantes obtêm da narrativa dos vazios. A dimensão e configuração do edifício não é visível pelo seu interior, nem tão pouco o alinhamento dos vazios e o movimento em zig-zag na sua totalidade.

Este aspecto introduz uma nova dimensão na interpretação do edifício, puramente centrado no individuo, pela alusão à dificuldade que temos em entender na plenitude algo de absoluto e último como o Holocausto. Daniel Libeskind refere-se ao facto de que essa visão de conjunto do edifício só ser possível do ar, pelos pilotos de aviões ou por anjos. Talvez o próprio edifício seja o anjo que Walter Benjamin descreve no quadro de Paul Klee4, a olhar para a cidade.

A apropriação que os habitantes de Berlim fizeram do vazio deixado pelo Muro, em 1991, a que chamam “pradaria de história”, com a sua transformação em memorial, aumentou a sensação de estranheza: um vazio saturado de história invisível, com memórias de arquitectura construída e por construir5. É essa apropriação com a história que não está presente que Libeskind propõe, porque o vazio vai sempre existir, nem que seja nas nossa mentes, apesar de ninguém o ter desejado. Nesse sentido, o Museu Judeu de Berlim constitui-se como um manifesto de reabilitação da cidade, por oposição ao apagamento selectivo da memória que, por essa altura, se discutia em Berlim.

A Europa suicidou-se, ao matar os seus judeus (...) A destruição de seis milhões de judeus (...) foi também a destruição da ideia da Europa. Com a perda desta ideia, nada permaneceu da Europa a não ser uma entidade sem cultura, sem alma

(George Steiner, 2005)

Na conjuntura política do pós-Muro, tornou-se motivo principal de debate encontrar uma identidade presente e futura para Berlim. Uma identidade urbana que representasse o modelo político contemporâneo da reunificação do país, e que projectasse uma imagem ao serviço dos interesses corporativos e governamentais, formalizada na percepção de um revivalismo estrutural que minimizasse os perigos da espontaneidade e da flexibilidade e que fosse capaz de atrair a atenção e investimento internacional. Como refere Ralph Stern, Berlim não se preocupou apenas com a reconstrução de um tecido urbano danificado, mas também com a sintetização das suas heranças fragmentadas a fim de forjar uma nova identidade para o futuro imediato6. Fê-lo através de um programa urbano designado Reconstrução Crítica, herdeiro do projecto IBA Neu em Berlim Ocidental, liderado por Hans Stimmann, que pretendia fazer a ligação entre a tradição e a modernidade.

As linhas gerais desse programa consistiam na recuperação de uma linguagem urbana dos séculos XVIII e XIX, para uma nova e tradicional cidade sintética europeia, assente na reconstrução de quarteirões perfeitamente definidos e claros, e no preenchimento selectivo dos vazios que a cidade acumulou, sobretudo, ao longo do século XX. Tratou-se essencialmente de inventar uma identidade e uma memória colectiva como utopia, projectando-a para o passado. No entanto, como essa projecção colidiu com o passado real da cidade, a Reconstrução Crítica esforçou-se por reescrevê-lo. Foi no confronto com o passado que a verdadeira recriação aconteceu, com a selecção e montagem de um misto de passados que se adequassem à narrativa histórica oficial. Se a história, como refere Walter Rossa, não pode apenas ser analítica e narrativa, mas essencialmente de interpretação, activa, (devemos) aceitar e operar com a sua relatividade, procurando o nosso posicionamento na história da cidade7. Ao mesmo tempo que efectuou esse valorização, alegadamente isenta de tendências políticas e quase no domínio do absoluto, a Reconstrução Crítica criou um imenso vazio na história que pretende apagar, inaugurando uma “fábula da tábua rasa”, nascida da arbitrariedade dos decisores políticos do momento.

É neste ponto que a proposta de Daniel Libeskind entra em confronto com a Reconstrução Crítica. Um plano é uma constelação arbitrária, a menos que saibamos ligá-lo às experiências que ocorreram e estão por ocorrer8. O Museu Judeu abre uma janela para que a cidade consiga conviver com o seu passado mais negro, convocando-o e incorporando-o na sua arquitectura. Daniel Libeskind propõe que entremos nesse labirinto9 e enfrentemos a memória do Holocausto. Ao fazê-lo, interpela a memória do passado, de certa forma encantado, que não é um passado qualquer: foi localizado e selecionado para fins vitais, na medida em que pode, directamente, contribuir para manter e preservar a identidade de uma comunidade10.

Notas

1São quatro os aspectos conceptuais referidos por Daniel Libeskind: o traçado de uma Estrela de David imaginária em torno da “luz invisível” da morada de judeus berlinenses; a ópera incompleta de Schoenberg; a lista de berlinenses desaparecidos ou deportados para campos de concentração nazis; e o texto sobre o apocalipse em Berlim, escrito por Walter Benjamin em One way street.

2Paralelo entre o centro do edifício e o centro da cidade com o Muro, transformados em vazios. O museu, como negativo de uma linha fragmentada, representa a ausência em permanência; o Muro, com a sua força e impacto de significados, a presença tornada ausência.

3Walter Benjamin, Teses sobre a filosofia da História (1940), p. 158.

4“Existe um quadro de Klee que se intitula Angelus Novus. Representa um anjo que parece preparar-se para se afastar do local em que se mantém imóvel. Os seus olhos estão escancarados, a boca está aberta, as asas desfraldadas. (...) O seu rosto está voltado para o passado. Ali, onde para nós parece haver uma cadeia de acontecimentos, ele vê apenas uma única e só catástrofe, que não pára de amontoar ruínas sobre ruínas e as lança a seus pés. Ele queria ficar, despertar os mortos e reunir os vencidos. Mas do Paraíso sopra uma tempestade que se apodera das suas asas, e é tão forte que o anjo não é capaz de voltar a fechá-las. Esta tempestade impele-o incessantemente para o futuro (...) é aquilo a que nós chamamos progresso”. Walter Benjamin.

5Andreas Huyssen, Present Pasts, Urban Palimpsests and the Politics of Memory, 2003, p. 58.

6Ralph Stern, Memória e Identidade Urbanas de Berlim: reflexão sobre a política da “Reconstrução Crítica” no período pós-unificação, 2008, p. 117.

7Walter Rossa, Património Urbanístico: (re)fazer cidade parcela a parcela, 2013, p. 3 e 8. 8Daniel Libeskind in El Croquis nº 80, 1996, p. 17. 9Ralph Stern, numa alusão à citação de Karl Friedrich Schinkel que lamentava não ver saída alguma desse labirinto que era Berlim, refere-se a esse sentido metafórico da cidade como labirinto e ao Holocausto como minotauro, habitante do labirinto a evitar a todo o custo.

10Françoise Choay, Alegoria do Património, 2010, p. 17.