Em Outubro de 2014, sensivelmente a altura em que se escreve este texto, faz 100 anos o nascimento do divulgador de matemática norte-americano Martin Gardner (21 de Outubro de 1914 — 22 de Maio de 2010). Não é fácil descrever Gardner; não se pode dizer que fosse um matemático (não tinha uma formação avançada na área), não se pode dizer que fosse um escritor, não se pode dizer que fosse um cronista típico. Gardner era sobretudo um grande apaixonado por um grande número de temáticas a que dedicava atenção com grande interesse, curiosidade e método. O facto de não ser especialista num tópico muito particular, mas entusiasta por vários assuntos como matemática, magia, arte, jogos, puzzles, religião, ciência, ficção e literatura, pseudociência, filosofia, etc., talvez seja uma das principais razões para o sucesso da sua obra.

A vertente em que mais se notabilizou relaciona-se com a matemática recreativa e sua divulgação. De 1956 a 1981 publicou a coluna “Mathematical Games” na prestigiada Scientific American. A sua secção tornou-se muito popular desde o início.

Matemática recreativa é um termo de difícil definição. Relaciona-se com a análise de problemas não-standard ou com a análise de problemas conhecidos através de abordagens pouco comuns. Mas o melhor é mesmo não a tentar definir. As definições tendem a fechar, a matemática recreativa, na sua génese, é aberta.

Embora possa servir de ponte para a descoberta de conceitos muito importantes, a utilidade não é a sua preocupação: engenho, imaginação e beleza é o que importa. Há quem diga de forma muitíssimo simplista que a matemática recreativa é o assunto que engloba puzzles e jogos matemáticos. No entanto, a sua abrangência é bastante mais vasta.

Historicamente sabemos que o nascimento e desenvolvimento de algumas áreas da matemática estão profundamente ligados à matemática recreativa - probabilidade, teoria de grafos, teoria de números, etc. Sendo assim, a matemática recreativa também pode facilmente resvalar para o que a sociedade em geral usualmente designa de «muito sério». Muitos matemáticos profissionais confessaram ter ganho o seu gosto pela matemática lendo os artigos de Martin Gardner no Scientific American. E isso, em si mesmo, é realmente muito sério. Como Richard Guy, um enorme matemático, disse uma vez,

«Gardner brought more math to more millions than anyone else»

O autor deste texto, matemático profissional, é mais um caso nesses milhões, tocado pelo «efeito Gardner». Para muitos matemáticos, no que diz respeito ao desenvolvimento das suas capacidades matemáticas, não há disciplina escolar, disciplina universitária ou livro técnico que ocupem o lugar da abordagem de Gardner.

Porquê?

A razão prende-se com o facto da matemática tratar fundamentalmente de ideias. É claro que, na sua natureza, a matemática tem associado a si um método. Além disso, tem muitas especificidades operacionais e formalismo próprios. Mas o que é realmente entusiasmante e capaz de tirar o sono a uma pessoa é a elegância das suas ideias. Como Hardy, outro grande vulto da matemática, dizia,

«A mathematician, like a painter or poet, is a maker of patterns. like the painter's or the poet's must be beautiful; the ideas, like the colors or the words must fit together in a harmonious way».

As ideias matemáticas, devido ao tratamento abstracto de que são alvo, aparecem nos mais variados contextos, úteis, inúteis, na vida de ricos, de pobres, na literatura, ciência, vida quotidiana, etc. O que nos cativa de forma mais intensa são as ideias e não outra coisa qualquer. Mas para deixar essa marca nas pessoas, nada como escolher contextos surpreendentes, bem-humorados, estéticos e culturais. Foi isso que Gardner compreendeu em todo o seu esplendor. Os seus artigos, além de extremamente cuidados e carregados de ideias elegantes e sofisticadas, são enquadrados de forma inteligente e variada. Por vezes, motivos aparentemente muito distintos são ligados através da matemática - E isso marca no leitor a enorme importância da disciplina, que é capaz de coisa tão poderosa.

A matemática não deve ser tratada como «dar sopa de legumes a uma criança», mas sim perceber que podemos pensar em «dar crianças de legumes a uma sopa» (ou «dar sopa de crianças a legumes», já deve ter percebido que temos 6 hipóteses) - não é crime pensar nas coisas sob os mais variados pontos de vista. Por vezes, essa capacidade autónoma e aberta, é vital para a resolução de problemas. Talvez seja realmente a mais importante.

É evidente que há componente de trabalho repetitivo e operatório na actividade matemática. E muito desse trabalho é específico da matemática, o que faz com que muita gente o «cole» à natureza da disciplina. Isso é compreensível e é verdadeiro. No entanto, quando estamos contentes por nos levantarmos às cinco da madrugada, não costuma ser devido a esse facto em si. É mais comum estarmos felizes devido ao que vamos fazer e à realização que isso nos traz. As cinco da madrugada são o meio e não o fim. A compreensão desta dualidade é muito importante para se gostar de matemática. É comum as pessoas que a praticam acabarem também por gostar do meio. Até porque, uma vez compreendidos, a linguagem e formalismo matemáticos são também elegantes em si. Mas não há nada como a beleza de uma boa ideia, de uma boa construção, de uma abordagem inteligente. O que Gardner fez como ninguém foi precisamente fazer com que os leitores vislumbrassem essa beleza.

Martin Gardner assinou textos que se tornaram clássicos. Não faz sentido listar aqui todos, mas a título de exemplo, destacamos o Jogo da Vida de John Conway, Pavimentações de Penrose, Artes Visuais de Escher, Charadas Lógicas de Raymond Smullyan, Fractais de Mandelbrot, versão anotada do Alice no País das Maravilhas de Lewis Carrol, para não falar de Matemagia, Pseudociência e centenas (literalmente centenas) de outros tópicos.

Como homenagem ao homem e à sua obra, realizam-se congressos regulares que reúnem matemáticos e mágicos, entre outros. Este movimento, iniciado nos EUA em 1993 (G4G-Gathering for Gardner) tem, desde há pouco, uma vertente deste lado do Atlântico (RMC-Recreational Mathematics Colloquia), que constitui a contribuição portuguesa para que Martin Gardner permaneça vivo e continue a chegar a milhões. Também destacamos a revista internacional Recreational Mathematics Magazine, iniciativa de entusiastas portugueses.