“Para entrar em estado de árvore é preciso partir de um torpor animal de lagarto às 3 horas da tarde, no mês de agosto. Em 2 anos a inércia e o mato vão crescer em nossa boca. Hoje eu desenho o cheiro das árvores”. ‒ Manoel de Barros

T’avonde, no dialeto algarvio, significa basta. O termo deriva do latim abundare. A nova exposição do artista Edgar Massul, #Other free Works, é concebida a partir do espaço que atualmente o rodeia, o Algarve. E neste espaço ele tenta penetrar nos subtextos que abundam na região. A sua obra é um processo de constante desvelamento: nada está feito, as obras necessitam de tempo e são constituídas por tempo e espaço, mais do que de qualquer outra matéria. Nas paredes de uma ruína, à beira da Ria Formosa, o artista planeou escrever t’avonde. A obra não realizada concretiza-se na imagem do cartaz da exposição. Ao apropriar-se de um termo arcaico, da mesma maneira que os algarvios se apropriaram do latim, Massul assina um manifesto sutil mas efetivo: basta. Basta de ruínas que a contemporaneidade produz e descarta. Ruínas de um património material e imaterial, natural e construído.

A exposição integra três núcleos de obras, que se dividem entre a Galeria TREM e o Museu Municipal de Faro. O primeiro núcleo, na galeria, é composto pela instalação Teu espelho (2013) ‒ um tanque construído com areia e água da Ria Formosa. Água e areia são elementos que se movem, que se adequam ao espaço, que se absorvem. Todo o processo será fotografado e o resultado afixado nas paredes da galeria que se convertem numa time line. O espelho de Massul é reflexivo na medida em que o artista permite à matéria que se ajuste, que se adapte, que assuma a sua impermanência. Não é um reflexo cego, mas uma atitude pensada.

No Museu Municipal, que outrora foi uma fábrica de cortiça, Massul vai instalar uma peça no centro do claustro, thermal body (mother), (2013). A matéria aqui é a cortiça queimada de S. Brás ‒ restos que sobreviveram ao incêndio que devastou a serra algarvia e que destruiu parte de uma cultura secular, a dos sobreiros. À volta desta peça, que funciona como um totem ancestral, ainda informe, o artista expõe os seus desenhos, feitos de matéria orgânica ‒ lama, folhas e frutos esmagados sobre o papel. De tuas margens algumas plantas espremidas (2014) é um conjunto de desenhos, em técnica mista, que revelam e escondem a sua origem natural. No papel pressentimos os rastos, mas o que vemos é o resultado de uma organização trabalhada do e no espaço. Se a matéria é orgânica e se o processo revela o caos presente na natureza indomada, o resultado é domesticado pelo artista que concebe e experimenta texturas, traços, cores e manchas.

A obra de Edgar Massul necessita de tempo. Para ser feita, para ser apreciada, para existir. As peças que ele compôs, ao longo da sua vasta carreira, não são demasiadas. Porque o artista não tem pressa em produzir. Ele negoceia com os objetos que lhe vão ditando formas, maneiras, modos. É uma obra sobretudo matérica: cada objeto diz, na sua textura específica, de onde procede. Não diz para onde vai, porque aponta sempre para o infinito da multiplicidade de sentidos que as coisas simples possuem. E a simplicidade não é fácil. É preciso estar atento para que a obra, na sua delicadeza, se revele.

Para fechar o ciclo, ou para reiniciá-lo, o artista apresenta-nos um livro, Formosa, a love story book, (2014). Técnica mista sobre papel, encadernado de maneira artesanal. Como na peça que expôs no Centro de Artes de Sines, em 2010, onde o artista escrevia e ocultava um poema de Al Berto com a terra vermelha da região, o seu livro também esconde e revela uma história por trás das muitas histórias que ele decide contar: as histórias de uma ria, de suas margens que ora aprisionam, ora se expandem em busca do mar ao fundo. O caminho da ria é no fundo uma deambulação pelas terras, é um adiamento da chegada ao mar. A ria é um compósito de matérias, de formas, de percursos. E está tão presente que se torna, muitas vezes, invisível. E a arte de Massul tem esta função: revelar o invisível ou ajudar-nos a voltar a ver. Entre a impermanência da matéria orgânica e a permanência da memória das coisas, o seu trabalho dialoga com a arte mais contemporânea e com a natureza ancestral.

T’avonde significa basta. Mas significa também que já nada é necessário, porque já se tem o suficiente. Na arte nunca se tem o suficiente, quer-se sempre mais. #Other free Works é uma exposição que dá continuidade ao projeto de curadoria da Galeria Trem, realizado pela licenciatura em Artes Visuais da UALg, em parceria com a Câmara Municipal de Faro. Com este trabalho completam-se dois anos de colaboração intensa e profícua. O convite ao artista Edgar Massul foi feito no sentido de celebrar o fim de um ciclo e o princípio de um novo ano de parceria. Porque a sua obra, como disse no começo, é um processo que não para, que se expande, que se reinventa e que volta, ciclicamente, ao começo.

Para mais informações: Edgar Massul
Edgar Massul, #Other free Works (Galeria Trem e Museu Municipal de Faro, de 24 de julho à 20 de setembro)