A memória afetiva reúne lembranças marcadas por emoções positivas — sensações de segurança, carinho e pertencimento — despertadas por estímulos sensoriais vivenciados na infância. São lembranças que não gravam apenas fatos, mas principalmente o sentimento que nos envolvia: o cheiro do bolo no forno que traz de volta o aconchego da casa de infância, a música suave que embalava o quarto ao receber um abraço especial.

Essas recordações têm caráter sensorial e ativam circuitos cerebrais de recompensa e vínculo, promovendo bem-estar imediato e moldando traços da nossa personalidade (Freire, 2024). Memórias afetivas podem surgir a partir dos cinco sentidos:

  • Cheiros (perfume da avó, tinta fresca);

  • Sabores (doce caseiro, fruta do quintal);

  • Sons (canção de ninar, risada de amigo);

  • Toques (abraço apertado, mão afagada);

  • Imagens (fotos de férias, desenhos na parede).

A infância é o período em que se constroem as bases emocionais e sociais de cada indivíduo. As memórias afetivas criadas nessa fase reforçam nossa identidade, elevam a autoestima e influenciam como enfrentamos desafios na vida adulta. Por isso, oferecer à criança um ambiente acolhedor e experiências significativas é, na prática, investir em saúde mental e em relacionamentos mais saudáveis ao longo de toda a vida.

No cotidiano, cada experiência se liga a uma emoção. Aquele frio na barriga do primeiro dia de aula, o abraço de um colega ou o cheiro do lanche na escola criam marcadores emocionais. Quando reconhecemos e nomeamos o que sentimos — por exemplo, ao dizer “fiquei feliz com aquele elogio” — ajudamos nosso cérebro a fixar melhor a informação (Silva & Santos, 2022). Por isso, associar o estudo a momentos prazerosos, como ouvir uma música calma durante a revisão, torna o aprendizado mais duradouro.

Na neurociência afetiva, Silva e Santos (2022) investigam como as emoções influenciam a formação e a recuperação de memórias. Eles apontam que, em ambientes ricos em estímulos positivos, o cérebro infantil forma mais sinapses nos primeiros anos de vida (Oliveira et al., 2021). Além disso, Gomes (2020) demonstra que práticas pedagógicas humanizadas, alinhadas aos princípios da neuroeducação, aumentam a plasticidade cerebral e fortalecem conexões relacionadas à motivação e ao aprendizado.

Daniela Freire (2024) explica que memórias afetivas guardam pedaços da personalidade e fortalecem o sentimento de pertencimento ao mundo. Segundo ela, todos os sentidos armazenam “caixinhas de memórias”1 que, quando reativadas, despertam emoções positivas. Ingrith Andrade (2023) complementa: lembranças carregadas de afeto e alegria aumentam nossa resiliência, autoestima e autoconfiança2, servindo de suporte em momentos de estresse ou trauma. Juntas, essas autoras mostram que o apego seguro construído pela presença emocional consistente de cuidadores gera adultos emocionalmente estáveis, enquanto a falta de afeto pode resultar em comportamentos imaturos, dificuldades de aprendizagem e problemas de relacionamento na vida adulta.

A família é o primeiro contexto de socialização da criança. Conforme o Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei 8.069/1990, art. 4º), cabe aos pais e responsáveis “assegurar o desenvolvimento físico, mental, moral, espiritual e social, em condições de liberdade e dignidade” (Brasil, 1990). Quando mães, pais ou cuidadores participam ativamente de brincadeiras, contam histórias e demonstram afeto em atos cotidianos, eles criam memórias afetivas duradouras que servem de alicerce emocional ao longo da vida (Bronfenbrenner, 1979).

A escola, por sua vez, complementa o papel familiar ao oferecer roteiros lúdicos, projetos colaborativos e um ambiente acolhedor. Segundo Vygotsky (1978), essas interações fortalecem o desenvolvimento socioemocional, pois promovem a aprendizagem em um contexto de apoio mútuo. A parceria entre professores e familiares no planejamento de vivências — como passeios, celebrações e oficinas afetivas — amplia a rede de segurança emocional da criança e reforça seu senso de pertencimento (OECD, 2019; UNESCO, 2022).

Consequências da ausência de memórias afetivas

Quando a infância carece de experiências calorosas e vínculos seguros, podem surgir:

  • Baixa autoestima e insegurança crônica.

  • Dificuldade de confiar e estabelecer relacionamentos íntimos.

  • Maior vulnerabilidade a transtornos de ansiedade e depressão.

  • Padrões de comportamento autossabotadores e carências afetivas persistentes na vida adulta3.

Benefícios ao longo da vida adulta

Memórias afetivas saudáveis

  • Fortalecem a resiliência, ajudando a enfrentar adversidades.

  • Potencializam a regulação emocional, reduzindo reatividade em situações de estresse.

  • Aprimoram habilidades sociais, favorecendo empatia e comunicação.

  • Mantêm saudável a saúde mental, funcionando como fonte de conforto e segurança em momentos desafiadores.

Dicas práticas para fomentar memórias afetivas

  • Reserve tempo diário para conversas e brincadeiras sem interrupções de dispositivos.

  • Crie rituais familiares: almoços temáticos, noites de histórias, passeios regulares.

  • Valorize e compartilhe histórias de família, fotos antigas e objetos simbólicos.

  • Promova atividades sensoriais (cozinhar juntos, jardinagem, música ao vivo).

  • Incentive a participação dos avós e outros cuidadores, ampliando redes afetivas.

Criar pequenos rituais fortalece essas memórias. Uma visita ao parque aos domingos, contar histórias antes de dormir ou preparar conjuntamente uma receita simples — tudo isso gera um acervo de lembranças que, mais tarde, nos servem de apoio diante de momentos difíceis.

Construir memórias afetivas na infância não é apenas um ato de carinho, mas um investimento estrutural na saúde emocional, social e cognitiva do indivíduo. Familiares, educadores e a sociedade devem articular esforços para proporcionar ambientes seguros, acolhedores e ricos em experiências significativas, garantindo o pleno desenvolvimento e preparando crianças resilientes, confiantes e felizes ao longo de toda a vida.

Por fim, memórias afetivas ajudam a formar quem somos. Elas constroem nossa identidade, reforçam a autoestima e nos ensinam a regular as emoções. Dedicar tempo de qualidade a si mesmo e às pessoas próximas é o primeiro passo para colecionar histórias que trarão conforto e segurança durante toda a vida.

Referências

1 Memória afetiva: as lembranças da infância e o impacto na vida adulta.
2 Memórias afetivas: qual a importância de cultivar boas lembranças desde a infância?
3 Memórias da Infância: como afetam a vida adulta?

Andrade, I. (2023). Afeto como alicerce da resiliência. Psicologia em Foco.
Brasil. (1990). Estatuto da Criança e do Adolescente. Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990.
Bronfenbrenner, U. (1979). The Ecology of Human Development. Harvard University Press.
Freire, D. (2024). Memória afetiva e personalidade. Revista de Psicologia Infantil.
Gomes, A. (2020). Princípios de neuroeducação na sala de aula. Educar e Inovar.
OECD. (2019). Education at a Glance 2019: OECD Indicators. OECD Publishing.
Oliveira, L. et al. (2021). Estímulos afetivos e sinaptogênese. Jornal de Desenvolvimento Neurológico.
Silva, M. & Santos, R. (2022). Emoções e memória no cérebro infantil. Neurociência Hoje.
UNESCO. (2022). Fostering Learner Well-being: An OECD-UNESCO Perspective. UNESCO Publishing.
Vygotsky, L. S. (1978). Mind in Society: The Development of Higher Psychological Processes. Harvard University Press.