A coexistência entre o pensamento artístico e a consciência social existe na forma especializada da alienação, enquanto sintoma da responsabilidade abstrata que o artista alcança, por via da observação consagrada no plano do isolamento e da separação entre o mundo político e o sensível. Observamos uma arte a responder às formas da dominação, de formas muito variadas servindo de testemunho de uma incerteza que configura o status quo quanto ao que é política e quanto ao que a arte faz, convergindo num ponto em comum: o modelo de eficácia.

A arte ou a experiência artística não é em si funcional, mas condiciona a existência humana por via do sublime, uma sensação visceral que transcende o espaço e o tempo. Cria a partir dos paradoxismos transcendente, convergências fraturantes capazes de gerar ressonâncias cognitivas e afetivas que em última análise apuram a consciência através da hermenêutica que alcança a experiência artística enquanto mediador para uma relação mais intrínseca com as vicissitudes da vida. Neste sentido, os oxímeros operam no plano da abstração a relação apurada com os conceitos que comprometem um aprofundamento sobre o regime afetivo e sensorial.

A passagem do milénio trouxe nesse sentido novos desafios, que provocam sobre diferentes latitudes, transformações que manifestam alterações profundas no tecido social, gerando sintomaticamente, figuras dilaceradas pelo tempo e pela evolução tecnológica acabando por deslocar, para contextos mais esquizofrénicos, as figuras mais opositoras ao sistema dominante, negando-se a si mesmos como elemento desse sistema.

Por sua vez, a reconfiguração do antropoceno ameaçado pelas crises climáticas, consubstancia uma condição própria do tempo presente que se estende invariavelmente ao coletivo, enquanto consequência de uma inércia infalível do tempo. Considero na esfera destas considerações, duas instalações artísticas que de formas distintas se tornaram pessoalmente e artisticamente relevantes, pelo modo como apuram as relações entre a política, ecologia e consciência social. Refiro-me às instalações “Wheatfild — A confrontation” da artista húngara Agnes Denes e “Land.Fill”, da artista portuguesa Gabriela Albergaria. Tratarei de as colocar sobre debate, mais à frente deste ensaio.

É no âmbito destas instalações que encontro vestígios de uma capacidade latente em gerar consciência social ativa, prontamente capaz de questionar as narrativas individuais e coletivas no âmbito da sua função, princípio, ética e identidade, ampliadas a partir do deslocamento da inércia sociopolítica. Existe necessariamente uma relação com a eficácia estética que permite este debate incisivo sobre o seu papel na reconfiguração da experiência humana.

Esta consciência social ativa que torna o coletivo em agentes de discussão, abala intemporalmente os princípios da sociedade moderna, através de construção de devires que assaltam do futuro as novas premissas. Os elementos que coadunam e permitem esta reflexão, resultam não apenas de uma atitude singular do artista criar expectativas, mas da congregação simultânea desse espírito errático capaz de produzir uma estética eficaz por via da rutura com os dogmas cristalizados.

A eficácia estética trazida para esta discussão, não representa um adorno decorativo, mas a suspensão com a concordância tradicional entre a estrutura do exercício artístico e a estrutura de um mundo hierárquico caracterizado ainda pela radical indiferença. Trata-se de tornar visível o que é invisível, colocando sobre reflexão a margem, recolhendo da obliteração a capacidade transcendente de construir um mundo sensível assente no pensamento crítico que soma à produção artística, a desconstrução das tradições e hierarquias que o pensamento político decora.

Quando observamos imagens mais cruas do ponto de vista humano, muito comum em documentários bélicos, materializa-se um sentimento de revolta que não é causado simplesmente pelo desencantamento com o nosso tempo, mas também por testemunhar de forma impotente injustiças difíceis de suportar. Para que a imagem produza efeito o observador deve estar convencido que o que está a ver incide sobre um imperialismo dogmático e não sobre a loucura generalizada dos homens. Esta dialética de suspensão da estética aparentemente paradoxal, assenta numa lógica de denúncia e afastamento ao simplesmente inverter posições.

A subjetividade neste sentido, segue uma inércia coletiva, consagrada no plano da intersubjetividade que não se aplica a individualidade, mas antes ao sonho que é partilhado entre todos. Por via de mecanismos afetivos e teóricos é possível discutir o juízo de valor na arte, a partir do objetivo a que a obra se compromete, mas sobre tudo a partir da capacidade visceral de transcender a materialidade da obra.

Não se trata do papel onírico da arte, mas da sua capacidade em reconfigurar novas premissas capazes de desconstruir o dualismo logocêntrico. Por outras palavras, trata-te da demarcação artística em relação a uma política do gosto gerada por via do entrelaçamento de lógicas heterogéneas, optando em contrapartida por dar a ver aquilo que não era visto, com a finalidade de produzir roturas no tecido sensível das percepções e na dinâmica dos afetos. Trata-se de um trabalho de ficção subtraído à modificação do modo de apresentação do sensível, talhando um novo recorte das coordenadas do representável.

Há de certo modo nesta relação, a acentuação da responsabilidade social do artista que Agnes Deles confirma:

Making art today is synonymous with assuming responsibility for our fellow man. I am concerned with the fact that we have taken evolution into our own hands. Acrescenta mais adiante no livro (…): “I believe that the new role of the artist is to create an art that is more than decoration, commodity, or political tool. It is an art that questions the status quo, and the direction life has taken, the endless contradictions we accept and approve of”.

[Hoje em dia, fazer arte é sinónimo de assumir a responsabilidade pelo nosso semelhante. Preocupa-me o facto de termos tomado a evolução nas nossas próprias mãos.” Acrescenta mais adiante no livro (...) : “Acredito que o novo papel do artista é criar uma arte que seja mais do que decoração, mercadoria ou ferramenta política. É uma arte que questiona o status quo, e a direção que a vida tomou, as contradições intermináveis que aceitamos e aprovamos.]

Salienta-se vocalmente a ambiguidade entre política e responsabilidade, simultaneamente enquanto conceitos convergentes e divergentes, na sua teoria e prática que Agnes e Gabriela usam enquanto discursos para debater a ecologia, mas sobretudo o espaço coletivo, partilhado, humanizado, destruído e curado.

A responsabilidade subtraída à arte cumpre-se por via da sua essência nuclear, uma vez que a arte representa em si um universo suprassensível capaz de deslocar o invisível e o visível comum a todos. O artista assume a responsabilidade em condicionar a existência humana, propondo a partir da ficção, novos processos mentais que sejam capazes de configurar experiência sublimes, geradoras de partilha de humanidade e de sentido crítico, permitindo em uma análise que a arte se cumpra como ela é.

As ressonâncias geradas por via deste efeito também ele político, nomeadamente de deslocação da relação objetiva e pragmática da arte, evidencia de igual forma uma relevância singular para a consciencialização da conservação da biosfera, continuamente ameaçada pela existência humana.

Este artigo assume duas partes.