A atmosfera da cozinha profissional está muito presente no imaginário das pessoas e carrega diversos mitos. A gastronomia é uma profissão nova, com muito espaço para crescimento no Brasil e que jamais deixará de existir em todo o mundo. Você já cogitou embarcar nesse mundo também?

Assim como a maioria das pessoas, eu tive minhas primeiras aventuras na cozinha em família e, quando era criança, além desse contato, o mundo da gastronomia na mídia se resumia a alguns poucos nomes de grandes chefs (sempre homens e geralmente estrangeiros atuando no Brasil) e a mulheres em programas femininos na TV ensinando receitas para as donas de casa. E juro que assistir às culinaristas no programa da Ana Maria Braga e a cozinha da Ofélia eram pontos altos do meu dia.

Mais perto de fazer a escolha profissional, decidi estudar Letras, seguindo minha outra grande paixão pelas palavras. Porém, cheguei a cogitar algo diferente quando descobri que existia um recém-criado curso de Gastronomia. Iniciado em 1999, existe no país somente há 25 anos e no início cursá-lo era algo bem distante da minha realidade por um conjunto de fatores: Era um curso totalmente novo, ainda sem certificação pelo MEC, custava caro e serviria para iniciar em uma carreira que nem era sequer entendida como uma “carreira” no país naquela época.

Entretanto, enquanto atuava na área de idiomas, muitas coisas foram mudando. Alguns nomes no país - como Alex Atala - ganharam fama internacional, fazendo os brasileiros começarem a pensar em gastronomia de uma maneira muito diferente. Restaurantes relevantes com um trabalho autoral alcançaram mais popularidade na mídia e começaram a surgir diversos programas na TV que mostravam uma gastronomia bem distante da cozinha de casa, focando nesse ideal de chefs duros e exigentes, que desenvolviam sabores e criações únicas, levando a grandes premiações e reconhecimento de seu trabalho em todo o mundo.

Isso tudo enche os olhos e a imaginação de quem gosta de cozinhar - eu mesma sei a influência que assistir a esses programas e acompanhar o trabalho de chefs que eu admirava tiveram nas minhas escolhas. Em 2016 mudei de carreira e cheia de idealizações comecei no mundo da gastronomia. Mal sabia que a realidade não era nada parecida com os episódios que eu assistia e hoje, sempre que alguém me pergunta sobre como é trabalhar numa cozinha profissional, me sinto na obrigação de contar mais sobre a realidade que não vemos por aí.

Como acontece em outras profissões, a teoria que aprendemos estudando é muito diferente da prática. Porém, especialmente na gastronomia, suas experiências e os lugares onde você pôde trabalhar é que fazem o seu currículo valioso. Muitas pessoas começam sem nunca ter estudado na área ao lado de outras, que depois de pagar caro num curso superior, saem da faculdade com grandes expectativas e se frustram ao perceber o caminho que terão de percorrer até poder atingir o cargo de chef de cozinha - algo que não vem com nenhum diploma, mas sim de muito trabalho e dedicação.

Como alguém que já trabalhou em outra área antes de entrar na cozinha, sempre digo que tem duas coisas especialmente diferentes nesse ambiente: o ritmo de trabalho e a convivência real em equipe.

Sobre o ritmo de trabalho, numa cozinha profissional sua produtividade precisa ser altíssima e, não importa quantos problemas aparecerão em um dia, você tem que resolver todos eles o quanto antes. Se num escritório você costuma adiar uma reunião quando surgem imprevistos, no restaurante eles surgem quase diariamente e precisam de solução imediata na grande maioria das vezes. É um trabalho de grande pressão - e nem estou falando só da hora do serviço, do timing de saída de pratos depois que um cliente faz o pedido.

Na cozinha, todos os dias de trabalho são imprevisíveis e você precisa tomar decisões rápidas e assertivas. Alguém ficou doente na equipe? Os trabalhos precisam ser redistribuídos e executados por quem está presente, invariavelmente. Houve um produto que não foi entregue pelo fornecedor? Alguém precisa ir até o supermercado buscar a tempo. Problemas com os equipamentos? Precisamos de um plano B para os preparos do dia.

E sobre a convivência em equipe, infelizmente muitos comportamentos que seriam totalmente inadequados num escritório são aceitos com naturalidade numa cozinha profissional. Muitos não sabem, mas a estrutura das brigadas de cozinha tem origem na organização do exército, com diversos níveis e hierarquias a serem conquistadas. É um ambiente extremamente masculino (apesar de estar caminhando para mudanças lentamente), cheio de bullying e abusos psicológicos e com uma forte cultura de que se você quer evoluir, precisa antes sofrer muito pra chegar ao topo. Isso inclui muita competitividade, estágios e horas extras não remunerados e críticas severas feitas de maneira grosseira na frente de toda a equipe, na maioria das vezes.

Isso tudo num ambiente geralmente apertado, muito quente, trabalhando muito aos finais de semana e feriados e no começo fazendo tarefas repetitivas como carregar caixas pesadas, descascar muitas cebolas, separar folhas de ervas, picar alho, etc. Especialmente no início, nada envolve a criatividade e a autenticidade que imaginamos como parte do dia a dia de trabalho de um chef - e também é completamente diferente da sensação de alegria ao preparar uma refeição pras pessoas que você ama na sua casa.

Dito isso, é importante ressaltar que existem lugares e lugares. Trabalhar com chefs brilhantes que respeitam e valorizam sua equipe é mais valioso e te ensina mais do que qualquer curso universitário. Para as pessoas que buscam um ambiente de trabalho mais leve e informal, a equipe certa deixa os dias de trabalho duro muito divertidos. E o contato com muitas pessoas diferentes, de outros países ou de outras cidades torna tudo super enriquecedor, além da vantagem de trabalhar movimentando seu corpo nesse mundo sedentário.

Então, se você deseja se aventurar nesse mundo, é imprescindível alinhar as expectativas com a realidade. Se possível, estagiar por uns dias num restaurante pode ser a maneira ideal de conhecer melhor esse mundo e entender se faz sentido para você. Conversar com profissionais da área também pode trazer uma visão menos romantizada deste trabalho, evitando frustrações no futuro.