Que som é esse? É como se alguém lesse um livro bem devagar, como se estivesse murmurando ou mesmo, falando sozinho (...) é uma voz sem entonação alguma, como a que transmite notícias sobre o tempo às pessoas que trabalham em alto-mar, intencionalmente lenta para os pescadores possam anotar o que está sendo dito. Esse tipo de murmúrio contínuo.

(Bae Su-ah)1

Esse texto tem por objetivo refletir sobre o som como materialidade que nutre diferentes reflexões para o campo da Linguística e da Psicanálise. Desde Saussure 2 até a atualidade, ele indica um antes da língua e um durante o funcionamento do sistema, marcando um fio que pode ser tomado como um “tipo de murmúrio contínuo” cortado e atravessado pelo vazio. Para Freud3 e Lacan4, o som é placenta do que será palavra, a base para a constituição de cada sujeito e(m) sua entrada na linguagem, já que existe uma instância na qual barulham ruídos, fermentam fragmentos de cintilações sonoras, sussurram sílabas e se inscrevem sons do mundo antes de que alguém possa falar. A capsula orgânica do corpo materno, nutrida de líquidos, é um grande festival de ruídos. O bombeamento do coração, a passagem de gases e sólidos, o mastigar de alimentos, os rumores dos órgãos em seus funcionamentos contínuos e os sinais da voz gestante em movimento unem-se aos sons do externo em forma de outros humanos tagarelantes, músicas, máquinas, animais e sons da natureza e da cidade.

Há sempre certo alguém a narrar, contar, cantar, gritar e a dizer o que ainda não se consegue ouvir de todo nem entender direito já que falta o sistema de uma língua. Assim, o feto está exposto a uma imensa massa amorfa de sons, ruídos e fragmentos de barulhos amortecidos por camadas de carne humana que também guardam uma dinâmica expressiva; e isso constitui e orienta o modo como os sons acolchoam o feto e o bebê - dentro e fora do corpo materno - antes que ele tome a palavra. O primeiro sinal do filhote humano é emitir o que é nomeado como choro, sinal de respiração e de vida. Depois, tanto outros. O infans passa a produzir toda sorte de tais sons, tais como suspiros, arrotos, gemidos, gases, soluços, balbucios, risos, choros, enfim, uma diversidade de entradas e saídas de ar (e aqui digitei erradamente arte, o que não deixa de ser, arte com o corpo ainda sem significante que o possa sustentar na posição de sujeito) que barulham e colocam em funcionamento o aparelho corpóreo, inclusive o fonador. Sons sem forma, sons sem sentido, sons sem língua que passam a ser semantizados, organizados e encadeados pelo adulto experiente que cuida do bebê. Freud5 aponta que essa figura, denominada de adulto experiente ou ajuda alheia, cumpre a função de situar o código no lugar onde as tensões e as excitações do corpo produzem uma barulhenta ebulição a reclamar escoamento e descarga.

Desse jogo entre os sons sem sentido do/no infans e a resposta com alguma interpretação construída pela ajuda alheia resulta a dependência do humano de um outro que lhe garanta alguma consequência apaziguante, ainda que temporária. Está no cerne do processo a palavra, sua função na constituição do sujeito, sua estrutura determinante no trato com a alteridade e na inscrição da cultura. O desamparo primevo, assim, inscreve a possibilidade de o som amorfo vir a ser significante de um sistema organizado como língua. O adulto experiente o introduz a partir de seus próprios significantes e, sem garantia, vai colocando o bebê no lugar de quem recebe um banho de palavras, uma chuvarada de nomes, uma corredeira de sons atrelados a sentidos ainda incompreensíveis que vão depositando fragmentos e rastros de um dizer em curso.

Em outro trabalho, Freud6 traz a instância do som para destacar um fato cotidiano da vida do neto, que “podia dizer apenas algumas palavras compreensíveis e utilizava também de uma série de sons que expressavam um significado inteligível para aqueles que o rodeavam.” Era um “bom menininho” muito ligado à mãe que tinha.

o hábito ocasional inoportuno, de jogar todos os pequenos objetos que alcançava para longe de si, a um canto do aposento, debaixo da cama etc., de modo que reunir os seus brinquedos não era coisa fácil. Ao fazer isso proferia, com expressão de interesse e satisfação, um forte e alongado o-o-o-o, que, no julgamento da mãe e no deste observador, não era uma interjeição e significava ‘fort’ (‘foi embora’). Afinal percebi que era um jogo e que o menino apenas usava todos os brinquedos para jogar ‘ir embora’.6

A base sonora da língua e da palavra ‘fort’, definida pela linearidade do significante ao modo de uma extensão como o Curso de Linguística Geral7 (CLG) propõe, faz com que o brincar do menino produza um mínimo da língua no jogo do ‘o-o-o-ó’. Um mínimo que é o suficiente para que as unidades discretas da língua sejam ditas separadamente, de modo ritmado para acompanhar o movimento do carretel e façam soar a cantilena da ausência.

Ele tinha um carretel de madeira, em que estava enrolado um cordão. Nunca lhe ocorria, por exemplo, puxá-lo atrás de si pelo chão, brincar de carro com ele; em vez disso, com habilidade lançava o carretel, seguro pelo cordão, para dentro do berço, através do cortinado, de modo que ele desaparecia, nisso falando o significativo o-o-o-o, e depois o puxava novamente para fora do berço, saudando o aparecimento dele com um alegre ‘da’ (‘está aqui’). Então era essa brincadeira completa, desaparecimento e reaparição8 (...)

Com esse exemplo do neto, Freud traz à reflexão o modo como o som estrutura e suporta a ausência e o retorno da mãe no brincar do neto. A privação do objeto amado por um tempo ganha a alegria do reencontro em outro momento, e a repetição desses movimentos garante prazer. É certo que o cenário sócio-histórico de então colocava em curso a crueldade da “guerra terrível que acaba de terminar” e o psicanalista estava às voltas com a questão da neurose traumática; o jogo infantil coloca para ele.

um além do pavor (...) no qual a renúncia traz volta a cruzar o júbilo, na qual a passividade reproduzida se torna ato de controle, na qual a vingança convoca uma estética, é a identidade imaginária da criança, com efeito, que vemos aqui se instalar (...) Mas, suportada pela oposição fonemática e significante do Fort-Da (‘Longe, ausente’ – ‘Aí, presente’), essa identificação imaginária revela ao mesmo tempo um ato de simbolização primordial (...) estaríamos lidando aqui, por antecipação, com a descoberta mesma dos poderes da fala9.

O ensaio infantil inscreve-se a partir de sons dispersos e engatinhantes de brincar sem (ainda) corpo de língua, ou seja, de um sistema que faça enganchar a imagem psíquica de um som à de uma ideia ou conceito. Os sons se atrelam em um fio de continuidade e colocam em curso o jogo dos objetos e os afetos do/no mundo. Esses sons, em “Função e campo da fala e da linguagem”10, são tomados da seguinte forma:

A forma de matematização em que se inscreve a descoberta do fonema, como função dos pares de oposição compostos pelos menores elementos discriminativos captáveis da semântica, leva-nos aos próprios fundamentos nos quais a doutrina final de Freud aponta, numa conotação vocálica da presença e ausência, as origens subjetivas da função simbólica

Ao formalizar o campo da psicanálise a partir da função e dos desdobramentos da função simbólica, Lacan10 marca um ponto importante ao sublinhar a importância desse jogo percebido por Freud no brincar do Fort-Da.

Pela palavra, que já é uma presença feita de ausência, a ausência mesma vem a se nomear em um momento original cuja perpétua recriação o talento de Freud captou na brincadeira da criança. E desse par modulado da presença e da ausência, que basta igualmente para constituir o rastro na areia do traço simples e do traço interrompido (...) nasce o universo de sentido de uma língua, no qual o universo das coisas vem se dispor.

Essas considerações apresentam uma espécie de eco no Dicionário das Tristezas Obscuras, de John Koenig, produção que tenta contornar o incontrolável jogo da/na língua, produzindo a colagem de sons improváveis (quiçá impossíveis de dizer) para dar corpo a uma série de emoções sem nome que não conseguimos explicar. O dicionário, tido como dispositivo de seleção, fixação e legitimidade dos termos de uma língua, aqui apresenta um complemento que desloca essa evidência. Não se trata de uma língua, mas de palavras que estão fora dela e não foram estabelecidas, talvez por tocarem em “tristezas obscuras”. O material de que se trata é o sem som e sem sentido, produzindo um bumerangue de presença e ausência que cada leitor poderá (não)completar ou inventar a seu modo.

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Figura 1 – Anedoche: conversa em que todo mundo está falando mas ninguém está ouvindo.

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Figura 2 – Jouska: conversa hipotética que você repete compulsivamente na sua cabeça.

Os dois verbetes marcam, a partir de uma combinatória de sons não usualmente manifestos e pronunciados em língua inglesa, tipos de conversa que implicam tristeza, ou seja, com encontro de letras aleatórias, cujos sons derivam de um campo de cacos e fragmentos sem sentido. O anecdoche e o jouska andam de mãos dadas, já que marca o esforço por dicionarizar o que falta (ou ainda não foi passível de) nomear e descrever em relação a “tristezas obscuras” e coincidem com o quanto ainda ficou fora desse circuito simbólico. Há sempre algo que escapole e que fica por dizer, a máxima dos sons e sentidos em toda parte. Para o que (ainda) não havia sido dito, o Dicionário finca uma estaca de significantes antigos e novos, de lá e cá, mobilizados para bordar algo em torno do impossível dicionarizar, uma tentativa a mais, e bela. A espécie de dormência de sons sem limite nem significado estabilizado – que sustenta a constituição do sujeito em seu contato com os sons do mundo – indica um adormecimento que os barulhos proporcionam e que a língua vai tentar bordejar, embora algo aí esteja sempre a fugir do horizonte.

Notas

1 Su-ah, B. Noite e dia desconhecidos. São Paulo, DBA Editora, 2021.
2 Saussure, F. Curso de Linguística Geral. São Paulo, Cultrix, 1916/1974.
2 Saussure, F. Escritos de Linguística Geral. Organizados e editados por Simon Bouquet e Rudolf Engler. São Paulo, Cultrix, 2004.
3 Freud, S. Psicopatologia da vida cotidiana. Rio de Janeiro, Imago, 1895/1976. 4 Lacan, J. Escritos. Rio de Janeiro, Zahar Editor, 1998.
5 Freud, S. Psicopatologia da vida cotidiana. Rio de Janeiro, Imago, 1895/1976.
6 Freud, S. Além do princípio de prazer. In S. Freud, História de uma neurose infantil (‘O homem dos lobos’), Além do princípio do prazer e outros textos. São Paulo, Companhia das Letras, 1920/2010.
7 Saussure, F. Curso de Linguística Geral. São Paulo, Cultrix, 1916/1974.
8 Freud, S. Além do princípio de prazer. In S. Freud, História de uma neurose infantil (‘O homem dos lobos’), Além do princípio do prazer e outros textos. São Paulo, Companhia das Letras, 1920/2010.
9 Didi-Huberman, G. O que vemos, o que nos olha. São Paulo, Editora 34, 1998.
10 Lacan, J. Escritos. Rio de Janeiro, Zahar Editor, 1998.