Recentemente participei de um debate sobre diferentes demandas do movimento indígena e entre tantas questões conseguimos acordar que construir espaços de escuta, afetividades e criatividade coletivos é uma demanda urgente, mas é a linguagem uma das nossas maiores demandas. Precisamos retomar e ressignificar nossas diferentes linguagens e decidimos iniciar com a palavra demanda. Não se trata de ‘demandas’, mas direitos, queremos falar sobre nossos direitos de sermos quem somos. Nunca mais ninguém nos dirá que nos oferece espaços pois os espaços nós mesmos construímos e nos interessa construir juntos com nossas parceiras e nossos parceiros. Ninguém nos dá voz, pois sempre possuímos as nossas, nos interessamos em somar e ecoar vozes coletivas, pois, como afirma Krenak, somos sujeitos de constelação, nunca somos sós. Pra isso, nesse espaço de construções, vou tentar desenvolver com você esse papo. Sigamos.

Quando surgem os movimentos indígenas e suas ‘demandas’?

Movimentos indígenas contracolonizadores existem desde o século XVI, quando iniciam todos os processos de exploração da mão de obra de nossos povos, de nossas terras e de nossos saberes. Desde o período da colonização, para nós povos colonizados e no meu caso, povos indígenas, nunca experimentamos algo diferente que não fosse violência. Fomos sequestrados de nossas essências e inseridos arbitrariamente na concepção de Estado Nação, com todas as suas relações de constitucionalidade e inconstitucionalidade. Desde a Bula Universis Christi fidelibus, de 1537, assinada pelo Papa Paulo III, “reconhecendo” que os ‘índios’ tem alma; até o recente, mas nada original, PL2903, conhecido como Marco Temporal, independente dos diferentes governos, somos sistematicamente sequestrados e violentados pelo Estado. Segue um pequeno fio.

De Pindorama ao Brasil Colonial

Embora reconhecesse a supremacia do direito indígena sobre as terras dos aldeamentos e sobre as terras originárias onde se localizavam nossas aldeias, no período colonial do Brasil, imperava a hipocrisia e a violência sob o direito, que pelos próprios colonizadores foi legislado e ‘implementado’. A hipocrisia predomina nesse período, pois a mesma lei que declarava liberdade aos indígenas, justifica sua escravidão e diferentes outros tipos de abusos em nome das “Guerras Justas”.

A Bula Papal de 1537, inicia o processo de direito da hipocrisia ao reconhecer a ‘alma’ dos indígenas que, como consequência, não poderiam mais ser escravizados. Nos anos de 1639 e 1741, novas Bulas Papais institucionalizam as guerras justas. Os novos documentos continuavam a proibir a escravização de indígenas, mas ao mesmo tempo a legitimava em nome das ditas “Guerras Justas”.

Não mais em nome de Deus, mas em nome do Rei, outros importantes documentos legisladores do período colonial foram elaborados, um deles foi a Carta Régia de 10 de setembro de 1611. Publicada por Felipe II, o documento, além de reconhecer o pleno domínio indígena sobre seus territórios e terras, proibia a transferência de indígenas para outras capitanias, como uma única exceção: quando eles “livremente” o quisessem, como se em algum momento desde a invasão nós tivéssemos alguma possibilidade de sermos livres.

Trazemos para esse papo ainda o Alvará Régio de 1º de abril de 1680. Mais uma vez temos o direito originário dos indígenas reconhecido. De acordo com este alvará, a concessão de sesmarias pela Coroa Portuguesa de maneira alguma poderia afetar o direito originário dos indígenas, pois ele reconhecia os indígenas como os primeiros e senhores naturais das terras.

A atuação de Marquês de Pombal também deixa muitas marcas, entre ela a lei pombalina de 6 de julho de 1755 que confirmou o Alvará Régio de 1680 e ao mesmo tempo normatizou e legalizou os descimentos e as proibições dos usos das línguas indígenas. Em 1758, o Diretório dos Índios garantia o direito dos indígenas sobre os não indígenas quando se tratava da terra, a não ser que o não indígena fosse “casado” como uma indígena. Assim foi legalizada a violência contra as mulheres indígenas. Até a Carta Régia de 2 de dezembro de 1808, promulgada pelo rei de Portugal Dom João VI, que considerado como um dos mais anti-indígenas, reconheceu o Alvará Régio de 1680, mas enfatizou que as “Guerras Justas” eram legais.

A legislação indigenista do Brasil Colonial se vestia de garantias e direitos, mas se desdobrava em violentas ações sangrentas e sequestros de nossos saberes, corpos e territórios.

De povos livres e criadores de tecnologias complexas em Pindorama à instituição de tutela governamental no Brasil

Esse próximo papo vai pra quem acha que tá na moda ser indígena no Brasil e sofre de apagamento histórico como consequência da colonialidade. É no Brasil Império que se estrutura toda a política indigenista que rege o debate para povos indígenas pensado e articulado pelo Estado até os dias atuais. Primeiro invadem nossas terras, nos impõem leis, sequestram nossas identidades e por último, nos acusam de não sermos mais indígenas.

É no final do Brasil Império que as políticas indigenistas iniciam sua musculatura, sobretudo como consequência do pensamento de José Bonifácio. De acordo com as posições de Eunice Paiva e Carmen Junqueira (1985), foram as regulamentações sobre catequese e os processos de ‘civilização dos índios’ legalizadas pelo Decreto n. 426, 24 de julho de 1845 que determinaram entre outras coisas:

  • A fixação das populações indígenas em territórios específicos;
  • A instituição de tutela governamental, uma vez que se solidificou a incapacidade jurídica dos indígenas;
  • A instituição do paternalismo administrativo e a total burocratização da questão indígena no país.

É ainda no Brasil Império que pela primeira vez se discute a questão fundiária. Conhecida popularmente como Lei de terras, a Lei n. 601, 18 de setembro de 1850, institui a propriedade privada e o comércio de terras. Ao instituir a ideia de propriedade privada e comércio de terras, embora diga referendar o Alvará de 1860, na prática, a Lei de terra desconsidera a presença de povos indígenas e suas relações com seus territórios. Ela, além de reforçar a ideia de floresta virgem que precisa ser ocupada, implanta no imaginário social o conceito de natureza enquanto um recurso que pode ser capitalizado. Desde então, nos tornamos os condenados da terra, parafraseando Fanon (2022).

A discussão sobre extermínio e/ou integração dos povos indígenas esteve presente no Brasil República. Uma das consequências desse debate foi a criação do SPI – Serviço de Proteção do Índio que posteriormente se tornou FUNAI – Fundação Nacional dos Povos Indígenas. Embora em seu nome estivesse presente a palavra ‘proteção’, o SPI institucionalizou a tutela governamental a todos os indígenas, pois embora a tutela já existisse desde o Império, foi apenas no Brasil República que ela atingiu todos os povos indígenas, mas havia uma única possibilidade de emancipação desses povos. Para isso, eles precisariam entre outras coisas:

  • Adotar a língua portuguesa;
  • Abandonar seus costumes tradicionais;
    Aderir a propriedade privada.

A tutela não protegia em nada os povos indígenas, pelo contrário, ela submetia os indígenas a regras de opressão e, principalmente, de humilhação. Por isso, durante muito tempo, incluindo nosso tempo presente, não era e ainda não é nada fácil assumir uma identidade indígena sem ser associada a incapacidade e impotência intelectual. Até os dias de hoje, achando que me elogiam, algumas pessoas falam: “Nossa, você fala muito bem para ser uma indígena. Você é mesmo uma indígena de verdade?”. São falas que transbordam as heranças da colonização.

Tendo como cenário o Brasil República, todas as Constituições tratam da questão dos povos indígenas, menos a primeira. A Constituição de 1934, no Art. 129 define a competência da União e sua relação constitucional relacionado a incorporação dos povos indígenas ao Estado Nacional. É importante destacar que os povos indígenas eram chamados silvícolas. As Constituições de 1937, 1946 e 1967 repetiram o texto da Constituição de 1934, no entanto, a última incorporou as terras indígenas como bens da União, além de assegurar a posse e o usufruto exclusivo aos indígenas em relação as terras que eles habitavam.

Em 1969 temos ainda uma Emenda Constitucional cujo objetivo, além de manter as terras indígenas como bens da União, reconheceu o direito indígena sobre a terra e sobre as riquezas naturais. Em 1973, compreendidos como indígenas em vias de integração, uma legislação infraconstitucional é sancionada pela Lei n. 6.001, o Estatuto do Índio.

Somente na Constituição de 1988, resultado de pressões internacionais e das lutas e organizações do movimento indígena e aliados, aqui lembramos e saldamos o discurso urgente e necessário de Ailton Krenak no Congresso Nacional, que a perspectiva de integração foi abandonada, ao menos no papel, pois as práticas de sequestro de nossas identidades ainda estão bastante ativas e presentes. Alguns pontos merecem destaque na Constituição de 1988, entre eles:

  • Abandono da perspectiva de integração e o reconhecimento das organizações sociais dos povos indígenas pelo Estado;
  • Resgate do direito originário sobre as terras que tradicionalmente ocupam;
  • Elaboração de leis, decretos e portarias sobre diversos temas.

O que fizeram de nós?

É no retrospecto, mesmo que sintético, dos processos histórico-político-socias que nós, povos indígenas, fomos e somos submetidos, que debatemos sobre nossas ‘demandas’.

Nossa geração vive um momento singular de refazimentos de nossas histórias, de retomada e fortalecimento de nossas memórias, de retomada de nossas línguas e tudo aquilo que sempre somos e sempre tentaram nos tomar. Mas nossa existência somente se faz possível como resultado de muita luta e resistência de nossos ancestrais.

Por isso, hoje, nossas demandas são por direitos, exigimos reparação. Agora somos os protagonistas de nossas histórias. Não somos índios, não somos tamoios, não somos os negros da terra, não somos os silvícolas. Somos povos indígenas. Somos Munduruku, Mura, Tucuju, Tikuna, Baré, Tukano, Desano, Tuyuka, Kanamari, Marubo, Parintintin, Tariano, Tenharin, Apurinã, e muitos mais. Somos muitos e plurais. Somos diferentes e exigimos o direito de existir e de viver as nossas diferenças. Não somos sujeitos da união, pelo menos não dessa união pós-judaica-cristã. Somos sujeitos de coletividades, mas na defesa e proteção de nossas diferenças, pois somos plurais. Somos os sujeitos das amazônias profundas e nossa demanda principal é pelo protagonismo daquilo que somos.

Primeiro, tentaram nos convencer de que erámos pobres e incapazes, mas como afirma Malheiro (2022), não existem tecnologias mais avançadas que a dos povos indígenas que conseguiram complexizar a floresta. Nossas histórias disputam simetria nas relações de poder. Nossas cosmologias são nossas identidades e nossas línguas expressam nossas relações com os diferentes processos cosmogônicos em que estamos inseridos. A vida é selvagem na aldeia, mas ela também se expande agora na cidade. Nossa demanda é por construções e fortalecimento de redes e cartografias afetivas. Pois demandamos estar onde quisermos estar.

Você topa fazer parte e engrossar esse caldo? Em caso afirmativo, é só subir nessa grande canoa de transformação. Vamos?