2004/01/25
É agora, pronto! Diabos me levem se não é agora que vou escrever o mais belo poema de todos os tempos,
disse o poeta, cravando o seu corpo na cadeira, em frente à escrivaninha, puxando para si a folha branca, descobrindo o bico à caneta, vibrando de temerária determinação e incontida coragem.

Mas, ao contrário do que seria desejável, o entusiasmo foi tanto que se despistou logo na primeira curva, quase capotando, estilhaçando a barreira do agora, batendo de frente numa deceção, rebentando-se-lhe uma sinapse, que se desfez em melancolia.

Fica para a próxima, disse o poeta, por fim, acendendo um cigarro.

Aspirou profundamente e soprou-se a si próprio para o ar. (Soprou-se a si próprio para o ar porque podia, quase que aposto…)

2004/02/13
É agora, de hoje não passa! É agora que vou escrever o mais belo poema de todos os tempos,
disse o poeta, pousando os talheres e degustando o último pedaço da deliciosa tarte de maçã com canela com que rematou aquele fecundo jantar. Do topo da mesa, para lá da garrafa vazia do tinto loquaz e pertinente que lhe fez companhia, conseguia ver agora o mundo inteiro, plano e linear, como sempre devia ser, e sob céu limpo.

Mas, ao contrário do que seria desejável, no desatar urgente do nó dialético enunciado pela fórmula cafezinho/cigarro, o seu olhar foi capturado pelos raios coloridos do televisor, em concreto pelas transbordantes maminhas de uma modesta atriz de telenovela, que soletrava emoções primárias com intensa atividade pulmonar.

Fica para a próxima, disse o poeta, por fim, recostando-se no sofá. E aninhou-se no colo de um entorpecimento morno e aparentemente inofensivo, com maminhas transbordantes por almofada e cores quentes e rápidas a bailarem-lhe na cara.

(Aninhou-se no colo de um entorpecimento morno porque podia, e sorte teve ele, quem me dera a mim!…)

2004/03/25
Pronto. É agora que vou escrever o mais belo poema de todos os tempos, disse o poeta colocando a última pasta no armário (3/Z- 03/04), emergindo da repartição pública terrena e alcançando enfim o tempo da planície verdejante de que planeara servir-se para soltar as suas palavras.

Abriu a porta aos substantivos primeiro, para se fartarem de trevos e ervinhas tenras, e depois aos pronomes pessoais, artigos e proposições, mais numerosos e traquinas. Aproveitou também para lanchar, deitando-se entre as raízes de um carvalho frondoso que pontuava a paisagem e degustando a sombra de um raminho de folhas aquecidas “al dente” pelo primeiro sol da Primavera.

Mas, ao contrário do que seria desejável, uma alcateia de adjetivos com cio e alguns advérbios mal-encarados, irromperam os trambolhões pelo prado, provocando alvoroço e duvida nas restantes palavras, erguendo no ar poeira e ansiedade.

Fica para a próxima, disse o poeta por fim, abandonando o seu rebanho à natureza e lamentando não ter ali uns bons verbos para manter a ordem.

(Abandonou o seu rebanho porque podia e porque, afinal, não tem de prestar contas a ninguém…)

2004/04/05
E agora o poema, enfim… É agora que vou escrever o mais belo poema de todos os tempos, disse o poeta, acendendo o cigarro com a mão esquerda e guardando a pistola ainda fumegante no coldre do sovaco, com a direita. Soprou o fumo para cima do cadáver que se esvaziava de sentido, o sangue a coalhar-se na boca entreaberta, o olhar petrificado, fixo no buraco recém-inaugurado no meio da testa. Empurrou o chapéu para a nuca e descontraiu os ombros. Pela janela, a cidade assistiu em silêncio ao crime. Estava vingado, por fim, as contas saldadas com o passado. Mas só um poema lhe poderia dar essa certeza, e lhe daria a libertação moral e a razão para continuar a viver no mundo de acossados que o engoliu e lhe penhorou a vontade.

Mas, ao contrário do que seria desejável, não seria com versos que escaparia à perseguição dos bófias que já se fazia anunciar com uma sirene enraivecida, lançada em ricochete contra os prédios da 5ª avenida.

Fica para a próxima, disse o poeta por fim, puxando a gola da gabardina, enterrando o chapéu, girando para a porta e regressando à sombra.

(Girou para a porta e regressou à sombra porque podia e porque dá um efeito bonito em película a preto e branco…)

2004/06/29
Sim, é agora! É agora que vou escrever o mais belo poema de todos os tempos,
disse o poeta saindo da piscina num impulso enérgico, como um golfinho tornado homem, assentando os pés no mármore da laje, erguendo-se, forçando a água (e uma brisa) a escorrer-lhe sobre a pele e sentido estalar no cérebro os suaves acordes do primeiríssimo verso.

Mas, ao contrário do que seria desejável, o sol manteve-se indiferente, lá no pico do céu vibrante, com o seu pesado lastro a consumir o ar, a diluir as sombras em lume brando, sempre a chatear, o filho da mãe!...

Fica para a próxima, disse o poeta por fim, ensaiando um arrojado e vistoso mortal à retaguarda, que o fez regressar, de chapão, ao imenso azul fresco e cintilante. Foi a ponto de aproveitar para, em pleno voo, gritar: iiiiiiiaaaauuugluglugasp!...

(aproveitou para gritar “iiiiaaaaaaauuuuu” etc. porque podia. E porque era giro gritar de pernas para o ar...)

2005/04/07
É agora, é agora que vou escrever o mais belo poema de todos os tempos, disse o poe...