O fascínio da ilha de Chiquinho, nome por que é mais conhecida a ilha de São Nicolau, devido ao romance homónimo do imortal Baltasar Lopes da Silva, vem-lhe de ser o berço da intelectualidade cabo-verdiana. Mas o verdadeiro alumbramento reside no anoitecer sereno na vila da Ribeira Brava, a famosa stantcha1 cercada pelas montanhas que lhe dão um ar misterioso de cidadezinha medieval.

Já foi uma ilha verde e nos seus portos também ancoraram navios piratas em busca das suas riquezas. O seminário da ilha de São Nicolau foi o foco incontestável de onde saíram homens que ajudaram a transformar o futuro das ilhas.

Nos tempos idos da minha infância, adorava tomar banho no tantchon2, um grande tanque da propriedade do primo Hermano, médico conceituado casado com a prima Aninhas, uma beleza que, reza a história, ele roubou da casa dos seus pais na ilha da Brava e a quem ofereceu o mais belo poema de amor de nhô Eugénio: “Ca tem nada nes´ bida mas grande qui amor”3.

O tanque ficava perdido no meio de um imenso canavial e fazia as delícias das nossas férias escolares, para onde também íamos por ser a terra do nosso pai.

Quando anos mais tarde a seca veio, o matagal desapareceu, o tanque seco e degradado assemelhava-se a uma desdentada carnadura numa terra reduzida a pó.

Esse foi o regresso mais triste de todos os meus regressos.

Hoje é diferente, a ilha alindou, enverdeceu de novo e até Queimadas, onde está o umbigo do meu pai, já possui estrada de penetração. É verdade que aos espaços verdes sucedem-se extensas terras não cultivadas, mas a impressão que fica é que o verde está a ganhar terreno.

E uma subida ao parque natural do Monte Gordo justifica tudo, pois é absolutamente ímpar a paisagem que do pico mais alto se desfruta: por um autêntico passe de mágica as ilhas todas, de Santo Antão a Brava, se oferecem aos nossos olhos deslumbrados, dispersas num mar magnífico azul e denso. Apetece dizer: Deus existe.

De Queimadas o meu pai foi para a ilha do Sal, o natural prolongamento urbano da ilha rural de São Nicolau. Levou consigo uma vontade férrea de vencer e um gosto inextinguível pela música. Fez-se marceneiro, esculpiu santinhos em pedaços de talisca e com sorte e perseverança tornou-se um dos primeiros comerciantes da ilha.

Foi tão bem-sucedido que do Sal partiu à conquista de São Vicente onde definitivamente se fixou e onde eu vim a nascer.

De São Nicolau vem-me com certeza esta inquietação cultural que, sem desfalecer me acompanha cada dia da minha vida.

Aliás foi em São Nicolau que, perante a partida de mais um contingente de homens, mulheres e crianças para irem trabalhar nas roças de São Tomé, nos anos cinquenta do século vinte, à procura de sustento, por causa das secas que vinham assolando as ilhas e trazendo como as terríveis consequências de fomes e mortes que um comerciante da ilha Armando Zeferino Soares, emocionalmente inspirado, escreveu a morna “sodade” que foi popularizada pela saudosa cantora cabo-verdiana Cesária Évora e é hoje considerada praticamente um hino nacional.

Neste rincão remoto e encantador de São Nicolau, onde as memórias do passado se misturam com a esperança do futuro, a cultura e a história são tesouros que nunca se perdem. É um lugar que continua a inspirar e a moldar gerações, mantendo viva a chama da identidade cabo-verdiana, para que todos possam sempre voltar a este refúgio de "sodade" e se reconectar com suas raízes.

Encerro com os versos desta canção icónica:

Quem mostra' bo
Ess caminho longe?
Quem mostra' bo
Ess caminho longe?
Ess caminho
Pa são Tomé

Sodade sodade
Sodade
Dess nha terra são Nicolau

Si bo 'screve' me
'M tá 'screve be
Si bo 'squece me
'M tá 'squece be
Até dia
Qui bo voltà

Sodade sodade
Sodade
Dess nha terra são Nicolau

Notas

1 Estância – Cidade de Ribeira Brava São Nicolau.
2 Tanque grande.
3 Não há nada nesta vida maior que o meu amor.