O Relatório O Estado da Segurança Alimentar e Nutrição no Mundo, publicado pela Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO), em julho deste ano mostra uma piora dos indicadores de fome e insegurança alimentar no Brasil. Segundo o relatório, em 2022, 70,3 milhões de pessoas viviam em estado de insegurança alimentar moderada, que é quando possuem dificuldade para se alimentar. O levantamento também aponta que 21,1 milhões de pessoas no país estavam em 2022 em insegurança alimentar grave, caracterizado por estado de fome.

O cenário pós-pandemia e o enfraquecimento de políticas de assistência social nos últimos anos seriam causas possíveis para o avanço da insegurança alimentar e da fome no país.

Para entender melhor a gravidade dessa questão, é necessário contextualizar a dimensão continental do país e o uso de grande parte do seu território na produção de alimentos. Portanto, o que se espera é que haja uma política de melhor distribuição de alimentos - o que vale não apenas para o Brasil, mas para o mundo todo.

Valdely Kinupp, biólogo e botânico, cunhou a expressão Plantas alimentícias não convencionais na defesa de sua tese de doutorado em 2007. Desde então, o conceito e a sua aplicação têm inspirado pesquisas a respeito do uso de plantas não comercializadas para a alimentação.

O uso do conceito Plantas alimentícias não convencionais, mais comumente identificada pela sua sigla PANC, parte da premissa de que há maior número de espécies comestíveis no país do que as espécies comercializadas nos supermercados, hortifrútis e feiras. Outra premissa é consumir o que está próximo e o que brota espontaneamente nos canteiros, sem custo.

Uma ressalva a ser feita é que nem tudo que é natural é seguro. Há plantas com alto teor de substâncias tóxicas que podem provocar reações adversas no organismo. Portanto, é recomendado contar com o auxílio de especialistas ou conhecedores. O livro Plantas Alimentícias não Convencionais (PANC) no Brasil, guia de identificação, aspectos nutricionais e receitas ilustradas*, de autoria de Valdely Kinupp e Harri Lorenzi, cuja segunda edição foi publicada em 2021, é um excelente material de consulta.

O Brasil é conhecido pela dimensão continental e variedade de paisagens, que podemos reconhecer como variedade de biomas. Há lugares mais ou menos quentes, secos ou úmidos, de clima equatorial com chuvas constantes ou de clima tropical, com estações do ano definidas ou não, lugares com influência marinha, outros banhados por rios, áreas florestadas e campos abertos. Enfim, nos acostumamos a pensar que moramos no país tropical, mas viver no sul do país é diferente do que viver no sertão nordestino. Tudo isso resulta na biodiversidade de espécies, cada qual adaptada a um ambiente.

Então, nos surpreendemos ao encontrar nos mercados a predominância de frutas de origem europeia e não encontrarmos muitas frutas nativas. Isso leva ao desconhecimento das pessoas sobre o seu próprio país, principalmente nas cidades brasileiras. Sapoti, taperebá, mangaba e buriti são nomes obscuros, mas outras frutas da nossa flora, como o abacaxi e o caju, ganharam espaço e são amplamente comercializadas. Sem mencionar o açaí, muito popularizado nas áreas urbanas hoje em dia.

Uma planta é não convencional até que ela tenha seu produto aprovado pela população, comumente mediada por profissionais da comunicação, do marketing e da saúde. Dessa forma, o conceito de PANC é móvel. A cúrcuma, o gengibre e o açaí já foram PANC e hoje são convencionais. O açaí, por exemplo, foi reeditado em relação ao seu modo de preparo original. Com adição do sabor doce do xarope de guaraná, o que produziu uma combinação com ampla aceitação, um alimento energético, nutritivo e saboroso.

Interessante notar que Valdely Kinupp destaca partes de plantas não convencionais de plantas convencionais. O que seria isso? A banana é uma das frutas mais populares do mundo, mas há partes da bananeira que não são usadas na alimentação: o coração, o palmito ou mesmo a banana verde. Muitas vezes as partes diferentes das plantas oferecem outros atributos. Por exemplo, a folha do limoeiro e a folha do mamoeiro são medicinais e podem ser usadas em infusões e chás.

Educar a população a respeito das PANC pode ajudar a conhecer e conservar a nossa flora e apresentar alternativas alimentares às famílias. É importante ensinar a valorizar o alimento que se tem, sem a vergonha por ele ter sido achado e não comprado. Além da desigualdade social, vivemos uma distorção social, o que pode ser verificado quando atribuímos valor ao quanto gastamos em determinada compra, sendo que a quantidade de dinheiro não valora a nossa necessidade.

Por isso, o consumo de PANC não é bem aceito pela população. Há que se ter uma embalagem e um código de barra, alguém lucrando com a sua compra. É urgente perceber essas distorções e reconhecer como aprendemos a avaliar um produto bom e outro ruim a partir de critérios alheios às nossas próprias necessidades. Antes disso, chamar um alimento de produto é um sinal da nossa desconexão com a sua origem.

A natureza nutre. Há limites e gargalos para que ela possa nutrir toda a população, mas ela está em toda parte. Assim como nós nascemos, de modo natural e extraordinário, as plantas brotam nos canteiros. É a vida se manifestando em várias formas.

No contexto em que vivemos hoje no Brasil, com o enfrentamento da fome, uma educação sobre as PANC pode nos ajudar a responder a partir do reconhecimento das nossas próprias riquezas, com baixo custo e alto aprendizado, ao promover a soberania alimentar e a autonomia da pessoa.